O Deus vivo e ressuscitado

Nota:

Texto baseado num artigo meu, com o mesmo título, publicado no jornal “O Diário”, da Arquidiocese de Belo Horizonte, em 16-12-67, década em que houve uma crise de fé na Igreja, gerada por “teólogos iluminados”, como diria hoje o Papa Francisco. Em parte, deve ser lido portanto naquele contexto. Mas não mudou muito a nossa realidade, dado que o homem ainda continua voltado para si mesmo, num narcisismo talvez ainda maior e mergulhado numa profunda crise de indiferença religiosa, abstendo-se da prática do Evangelho e, consequentemente, dos valores mais plenos da vida.

1 - A angústia de que parece revestir-se o nosso século pode ser resultado da conscientização do homem, que começa a perceber cada vez mais que não é somente vítima de problemas e causador de problemas, mas sobretudo que constitui ele próprio um grande problema. Isto porque, não imitando o Cristo, que “crescia em idade e sabedoria diante de Deus e dos homens” (Lc 2,52), parte dos homens parece crescer apenas fisicamente, outra parte consegue crescer nos conhecimentos naturais, na cultura profana diria, tendo esta, porém, horizontes limitados, e outra pequenina se desenvolve na sabedoria diante de Deus e dos homens, esta como “semente viva” do Reino. Assim, “a humanidade de adultos” se reduz muitas vezes a uma humanidade dos sempre “menores de idade”, principalmente na experiência religiosa e na consciência dos valores morais, éticos e religiosos, como tristemente podemos perceber ao olharmos o nosso mundo.

2 - Movido pela consciência de seu relativismo e revoltado talvez com esta realidade, porque sempre quis ser soberano (Cf. Gn 3,5), o ser humano procura libertar-se de seus limites, proclamando até mesmo a “morte” de Deus, ora por não saber conciliar aspectos do mistério divino, “nivelando” a sua imagem em seu próprio proveito, ora porque, diante de uma insegurança moral, este Deus o incomoda ao dizer-lhe pela consciência, que nem tudo que pode ser feito deve ser feito. Deus é amor e misericórdia e não quer que seus filhos, adotados por Ele no Filho essencial, Jesus Cristo, portanto por pura graça, sejam então “filhos bastardos”. Pode ser um paradoxo, mas na compreensão cristã o homem só é verdadeiramente livre quando se reconhece dependente de Deus, numa dependência, porém, jamais escrava, e sim filial.

3 - O que nos deve assustar sobretudo não é esse reducionismo de Deus pelo homem, mas essa profunda inexperiência vivencial e histórica de Deus por grande parte da humanidade. O Deus vivo da Sagrada Escritura, o Deus-Emanuel (Cf. Mt 1,23), imanente a nós em sentido pleno, não é, porém, sentido e vivido pelo homem de nosso século. Sua proximidade não é experimentada no concreto da vida de muitos, mesmo de cristãos. E se os homens não estão vivendo na dimensão do “Eu estou convosco” é porque ainda não fizeram uma opção pessoal pelo Deus de Jesus Cristo, Deus que é Pai (Mt 6,9; Jo 17,6.26; Gl 4,6), e não simplesmente “Deus”. Consequentemente, ao contrário dos Apóstolos, que pregavam o Cristo ressuscitado, principalmente São Paulo (1Cor 2,2; Gl 3,1), muitos hoje, sem pessimismo de minha parte, falam mais em termos ideológicos, sem aquele clarão teológico da Palavra de Deus, o que leva não poucas vezes a frustrações existenciais.

4 - Pode ser um início feliz para uma conscientização o notar que Deus de fato “morreu” no coração de muitos homens, ou seja, que foi expulso de muitas vidas pela inautenticidade destas. Porém, afirmar que a fé da Igreja está superada diante de tantos avanços tecnológicos e científicos do mundo de hoje pode ser atitude de avestruz, parecendo mais querer esconder-se da verdade. A Igreja sabe que todo o progresso humano, em qualquer sentido, é não somente aceito, mas desejado por Deus, enquanto produz inclusão social em todos os seus benefícios. Diga-se: não é isto que mostra o nosso mundo de hoje, mergulhado como está na mais profunda crise de valores éticos e morais: ausência global de verdadeiros líderes, guerras e genocídios como fatos comuns, o terrorismo institucionalizado, o vergonhoso problema das migrações forçadas, grande parte da humanidade sofrendo de inanição, por falta de alimento, este, porém, produzido em trilhões de toneladas no chão de nosso mundo.

5 - O que pode estar acontecendo também hoje, e isto em proveito da crise religiosa, é que grande parte dos cristãos continua “velando” o Cristo-Morto, estático, da Sexta-Feira Santa, às vezes até com lágrimas, sentimentos piedosos sim, mas despreocupada com o encontro decisivo com ele no Domingo da Páscoa. “Velar simplesmente o Cristo morto” também buscava Maria Madalena (Cf. Jo 20,1), mas o “velório” que ela desejava fazer não ia salvar o mundo, e sim o anúncio da ressurreição (cf. Jo 20,18), que lhe traria não um consolo desejado, mas uma vida de fervorosa missão. Vê-se, pois, que todos nós precisamos progredir muito neste caminho, para sermos transformantes e dinâmicos, testemunhando o Deus vivo e dinâmico, de que tantas vezes nos falam as Escrituras.

6 - O Deus da Páscoa, assim experimentado, deixará de estar para muitos não só naturalmente no mundo, ou presente só no rito, mas passa a estar concretamente, em transformação, presente sim em cada um de nós, o que exigirá de cada um o desejo sincero de colocá-lo na vida e manifestá-lo sempre em nosso coração. Deus então será vivido na plena realidade do cotidiano, e isto será um princípio de tudo. (Quando viverá também nas instituições políticas, recreativas, culturais e outras?)

7 - Mas como em todos os fatos, podemos descobrir na crise religiosa de nosso tempo um sentido apelativo. Podemos até mesmo ser causadores dessa crise, em virtude de nossa pobreza de testemunhos. Cabe-nos, porém, usando as pistas riquíssimas do Concílio Vaticano II, dinamizar a nossa vida cristã por um amadurecimento básico, fortalecendo os aspectos de opção pessoal e de engajamentos práticos. Só assim penso ser possível convencer o mundo, de um modo mais eficaz, de que Deus, esquecido na vida de muitos, está de fato ressuscitado e mais vivo entre nós, por estar em nós. Aleluia!

 

(Clique aqui para ir ao texto da Sexta-Feira da Paixão)

(Veja também texto sobre a Paixão do Senhor)

 

João de Araújo

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