Reflexão sobre a paixão do Senhor

paixao-jesus-cae.JPG1 - Ao celebrarmos a Semana Santa, a semana maior da vida da Igreja, somos convidados a inundar a nossa vida, que se tornou nova, do espírito de ressurreição, vivendo a certeza da glória definitiva e plantando no mundo a mesma semente de um mundo novo.

2 - Nosso povo - sofrido, desgastado, desrespeitado, e sem muito alento - costuma, às vezes, reduzir a Semana Santa ao sofrimento da Sexta-Feira da Paixão, contentando-se em contemplar e sepultar o Cristo morto, identificando-se com ele, chorando sua morte, sem, porém, alegrar-se com o mesmo Cristo, vivo e vencedor, na sua gloriosa ressurreição. Quanto à vida do presente, Santo Agostinho nos ensina: "A paixão do Senhor mostra-nos as dificuldades da vida presente, em que é preciso trabalhar, sofrer e por fim morrer. A ressurrreição e glorificação do Senhor nos revelam a vida que um dia nos será  dada". 

3 - A experiência negativa da Sexta-Feira da Paixão é, pois, um desvio na prática cultual e na vivência de muitos de nosso povo, uma vez que, sem a ressurreição do Senhor, de nada valeria todo o sofrimento do Filho de Deus, a nosso favor. Seria vã a nossa fé, conforme nos ensina São Paulo. Estaríamos ainda acorrentados nos porões dos Egitos, de ontem ou de hoje, ou caminhando, errantes, pelos desertos do mundo.

4 - Na teologia, na liturgia, na catequese, na mística, na espiritualidade, nas reflexões bíblicas, conforme crê a Igreja, não se pode, pois, separar nunca: a cruz, da glória; a morte, da vida; o sofrimento, da plena alegria e da transfiguração final. Nos desígnios de Deus, tornados para nós realidade em Cristo, o sofrimento torna-se meio de santificação; a morte, porta para a eternidade; a cruz, sinal de nobreza e não mais de ignomínia, como no passado. Isto porque a luz da ressurreição dissipou para sempre as trevas da morte, e tudo o que se opõe à vida foi também, pela morte de Cristo, plenamente vencido, embora ainda tenhamos de sofrer, na precariedade do mundo, os efeitos negativos do mal, combatendo-os porém, e não em aceitação passiva. Somos convidados a amar no sofrimento, como Cristo, e não, como muitos pensam, erroneamente, a amar o sofrimento. Diríamos então que Deus nunca quis o sofrimento, mas sempre quis que nós o superássemos no amor.

5 - Na primeira leitura bíblica da Sexta-Feira da Paixão, o profeta Isaías descreve os sofrimentos do Servo Padecente, uma figura misteriosa, que carrega os pecados de seu povo e os assume, como alguém castigado por Deus, sendo, porém inocente. A Igreja sempre viu nesse servo o Cristo Sofredor, cuja paixão Isaías como que descreve antecipada e profeticamente. Por isso, nós, cristãos, podemos ler também todos os sofrimentos da humanidade como uma paixão de Cristo. Se anteriores a ele, uma paixão antecipada; se depois dele, uma paixão continuada. Cristo, pois, continuará em agonia, misticamente, até o fim dos tempos, pois sofreu, sofre e sofrerá em cada um dos filhos de Deus. Até mesmo na vida de sua Igreja, Cristo sofre as dores do desmembramento, na vergonhosa divisão dos cristãos.

6 - No sentido acima, temos a pregação de um bispo, do século II, por ocasião da páscoa. Segundo ele, Cristo, assumindo a nossa humanidade, tomou um corpo sujeito ao sofrimento, e seu espírito, que não pode morrer, matou a morte homicida. Como paixão antecipada ou como prefiguração da Paixão do Senhor, tal sermão nos ensina que Cristo foi morto em Abel, amarrado de pés e mãos em Isaac, exilado de sua terra em Jacó, vendido em José, exposto aos perigos em Moisés, sacrificado no cordeiro pascal do Antigo Testamento, perseguido em Davi e ultrajado nos profetas.

7  - Podemos dizer ainda, numa atualização de nossos tempos, que Cristo foi também morto nos judeus, na fúria do nazismo. Sacrificado em tantos mártires de nossa história e nos que lutam por um mundo melhor. Índios, negros, excluídos, marginalizados, doentes e oprimidos, de todos Cristo assume ainda hoje a dor. Em tantos irmãos nossos, que sofrem a humilhação de tantas exclusões, Cristo sofre também a mesma exclusão.

8 - Ele mostra a sua face, por exemplo, no rosto sofrido de nosso papa, que vê um mundo cada vez mais endurecido e pouco disposto à conversão, como também vê os próprios filhos da Igreja em crise de fé, indiferentes à prática da misericórdia, sem levar a sério o compromisso missionário e libertador do Evangelho.

9 - Que todos nós não nos contentemos, pois, só com a morte do Cristo por nós, mas busquemos no clarão de sua ressurreição a luz que faz novas todas as coisas, e que novo então se torne o nosso coração, para o serviço fraterno e para a glória de Deus.

(Clique aqui para conhecer a liturgia da Sexta-Feira da Paixão)

João de Araújo

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