Sexta-Feira da Paixão

1 - Tendo Jesus celebrado a ceia com os seus discípulos, e tendo sido, na mesma noite, entregue aos poderes do mundo, celebra-se hoje então sua morte sacrifical, sua Paixão e sua cruz gloriosa. Note-se, porém, que, embora entregue por Judas, em ação, diríamos “policial” e criminosa, sua morte é resultante, teologicamente, de sua auto-entrega, para a nossa salvação. No Mistério Pascal do Crucificado e Ressuscitado, não se trata de “morte oferecida”, mas de vida que se doa totalmente por amor, pois somente a vida é dom que se pode ofertar. 

2 - Na sua viva liberdade, então no evangelho, Jesus dirá: “Ninguém me tira a vida, mas eu a dou por própria vontade. Eu tenho o poder de dá-la,  como tenho poder de recebê-la de novo. Tal é o encargo que recebi de meu Pai” (cf. Jo 10,18). E acrescentamos: o Pai (Deus) não condena o Filho à morte. Ao contrário, salva-o da morte para a mais plena glorificação.   Diríamos que a ressurreição de Jesus é a resposta mais clara do Pai à diabólica perversidade dos opressores de seu Filho.  

3 - Para a compreensão teológica do Mistério Pascal, devemos saber que todo amor verdadeiro está sempre pronto para ser imolado. Deve ser dom de si, efusão que pode chegar ao exaurimento, à “kênosis”, ao esvaziamento total. Dir-se-á certamente que este amor é utópico, irreal, como já noutro texto se expôs. Mas – tenhamos certeza - este é o amor com que Deus criou o mundo e com o qual nos sustenta e envolve. É, sim, o amor que Jesus nos revela em sua missão redentora, amando-nos até o fim (cf. Jo 13,1). Assim, a Páscoa de Jesus manifesta aos nossos olhos o mistério insondável e eterno do Pai. Numa renúncia total de si mesmo, o Crucificado entra para sempre num mistério de imolação e se torna eternamente o Ressuscitado e Senhor (Kyrios), pelo Pai exaltado e glorificado (cf. Fl 2,6-11). Em resumo, podemos dizer que é isto que celebramos na Sexta-Feira Santa.

4 -Acrescentando ainda ao que acima foi dito, queremos notar que a morte, enquanto realidade biológica, é inevitável. Porém, em seu aspecto pessoal, ela tornou-se em Cristo um ato de liberdade e de amor, como vimos acima. Notemos ainda que Deus não hesitou em fazer de seu próprio Filho amado um ser mortal. Assim, conhecendo o desígnio do Pai, o Filho, abandonando-se em suas mãos, é glorificado na morte e torna-se o Salvador do mundo. Como vemos sobretudo em João, Jesus não vence a morte fugindo dela, mas assumindo-a, no ardor da vida.

5 - A propósito, acenando para a morte de Jesus, a primeira antífona da salmodia das Vésperas do Sábado Santo, fazendo eco a Oséias e a Paulo (cf. Os 13,14; 1Cor 15,54-55), vai solenemente cantar: “Ó morte, eu serei a tua morte! Ó Inferno, eu serei tua ruína!”.  Também o Prefácio dos Fiéis Defuntos, confessando a fé na ressurreição, proclama em tom pascal: “Senhor, para os que creem em vós, a vida não é tirada, mas transformada. E, desfeito o nosso corpo mortal, nos é dado, nos céus, um corpo imperecível”. 

6 - Voltando-nos para a liturgia, queremos notar que, neste dia, não se celebra a Eucaristia, como também nenhuma outra liturgia senão a Solene Ação Litúrgica da tarde. É um dia marcado pelo pesar e pelo jejum. De participação viva na Paixão do Senhor, como foi historicamente acontecido. O jejum da Sexta-feira Santa é, como nos ensina a reforma litúrgica, “jejum pascal”, e é desejável que ele se prolongue, quando possível, até o Sábado Santo, numa identificação mais profunda com a prática dos Apóstolos e dos primeiros cristãos, pondo em prática o que o Senhor disse em Mt 9,14-16 e Lc 5,33-35, ou seja, que, quando ele lhes fosse tirado, os discípulos então jejuariam.

7 - Note-se que na Sexta-feira Santa  o próprio clima da igreja é de paixão. Ela está despojada: altar desnudado, sem flores, sem som festivo, sem velas e sem canto no início da celebração. Apenas na hora da comunhão coloca-se sobre o altar uma pequena toalha, o corporal e as âmbulas. Saibamos, porém, que nem tudo na Sexta-Feira Santa é dor e tristeza. Já foi dito que, na espiritualidade do Mistério Pascal, a cruz se mergulha na glória e a tristeza se converte em alegria. Por isso, a cruz, em rito solene, é mostrada aos fiéis e por eles adorada, momento em que se cantam não apenas os lamentos do Senhor, mas também cantos da cruz triunfante e gloriosa, e isto supõe a desejável formação litúrgica das equipes de celebração.

8 - Como diz o Diretório Litúrgico da CNBB, “na glória da cruz brilha o mandamento novo do amor; no brilho da cruz resplandece a Eucaristia, o sacramento  do amor; e no resplendor da cruz somos chamados a fazer o que ele nos mandou: "Fazei isto em memória de mim". Toda a Quinta-Feira Santa então como que se torna presente, de maneira sacramental, na Ação Litúrgica que celebramos, e em verdadeira anamnese litúrgica.

9 - A Igreja celebra na Sexta-Feira da Paixão, como veremos,  uma solene ação litúrgica, na parte da tarde, constituída de três partes: Liturgia da Palavra, adoração da Cruz e comunhão eucarística, esta guardando memória da noite anterior, com hóstias consagradas na missa solene da Ceia do Senhor, como acima foi afirmado.

10 - Na celebração solene, o rito inicial é feito em silêncio e sem canto. Chegando ao altar, o sacerdote se prostra ou se ajoelha. Também a ajoelhar-se, por um instante, são convidados os ministros e toda a assembléia celebrante.  Logo após, dirigindo-se ao altar, sem saudar a assembleia, o sacerdote reza uma oração própria, sem o “Oremos”, e se inicia a Liturgia da Palavra. Na primeira leitura,  Isaías  fala-nos do servo padecente, que a liturgia aplica a Cristo, o verdadeiro servo de Deus. O salmo 31[30] é outra passagem profética que se aplica ao servo sofredor. Já a segunda leitura, da Carta aos Hebreus, é uma revelação bíblica do sacerdócio de Cristo, sacerdócio único, do qual todos nós participamos pelo Batismo. Na leitura da Paixão, aplica-se a mesma orientação do Domingo de Ramos.

11 - A Liturgia nos revela não só que o Cristo crucificado exerce a sua realeza a partir da Cruz, como João nos mostra na leitura da Paixão, mas é também ele o verdadeiro e único sacerdote do Reino de Deus Pai, na perícope bíblica da segunda leitura. Podemos afirmar que João lança um olhar mais teológico sobre a Paixão do Senhor, não se preocupando com uma correta narrativa histórica. Faz parte ainda da Liturgia da Palavra a Oração Universal, com suas dez intenções. Tudo indica que tal oração dá origem às preces da comunidade em nossas missas e se inspira nas recomendações de São Paulo a Timóteo (cf. 1Tm 2,1-2).

12 - Esclarecendo um pouco mais o que acima se diz, queremos dizer que João, por exemplo,  deixa entender que Pilatos  não tem poder sobre Jesus,  mas é Jesus, em sua soberania e fidelidade ao Pai, que julga Pilatos, representante do poder político e opressor. Na verdade, Pilatos se apresenta como num teatro, e como péssimo ator, entrando e saindo em seu próprio recinto, e cada vez mais tonto, como barata. Pilatos se apresenta, na  verdade, como um juiz medíocre, isto sim. Na mesma compreensão, João faz ver, igualmente, que não são as autoridades religiosas que condenam o Divino Mestre, como parece, mas é Jesus, em sua soberania, que as condena, por serem elas, naquele contexto, igualmente opressoras.

13 - No segundo momento da Ação Solene, vamos ter a Adoração da Cruz. Ela é trazida, processionalmente, da sacristia ou do fundo da igreja, pelo diácono ou pelo sacerdote, ladeado por dois acólitos, com velas acesas e coberta com véu vermelho. É então mostrada aos fiéis num rito em que, por três vezes, com o canto “Eis o lenho da cruz...”, é desvelada. É previsto para esse momento um pequeno instante de adoração coletiva e silenciosa, ficando os fiéis então de joelhos. Para facilitar a adoração individual, o sacerdote ou um ministro coloca-se diante do altar segurando a Cruz e cada fiel se aproxima para o seu gesto de adoração. Nesta adoração respeite-se a espiritualidade dos fiéis, a qual pode ser expressa pelo tradicional beijo, pela genuflexão, ou inclinação da cabeça ou do corpo.

14 - Saibamos que a Cruz, na leitura cristã, não deixa de ser penosa, sobretudo para os pobres, mas é também cruz gloriosa, triunfante, pois é o madeiro sagrado de nossa redenção. Na vivência da espiritualidade do Mistério Pascal,  não queiramos pedir a Deus uma cruz leve para a nossa vida, uma “cruz de isopor”, diríamos, mas aceitemos a que Ele nos destinou, feita certamente sob a nossa medida. Na vida cotidiana, como também na liturgia, não seja a cruz então celebrada e vivida como “sinal negativo”, como “cruz dolorosa”, esta sempre inclinada a provocar mais ainda o "dolorismo" em tantos cristãos. Terminado o rito da adoração, a Cruz é colocada no centro do altar, com as duas velas nas extremidades, ficando elas acesas até o final da celebração.

15 - O terceiro e último momento da liturgia é o da comunhão. Como se falou antes, é colocada sobre o altar apenas uma pequena toalha, o corporal e as âmbulas, contendo hóstias consagradas na missa da Quinta-Feira Santa. Ao som de matraca, se possível,  (que contrasta com o som da campainha)  por ministros as âmbulas são trazidas da capela ou do lugar digno em que foram recolhidas e guardadas na missa da Quinta-Feira Santa. Aqui então,  simbólica e sacramentalmente, une-se a liturgia da Sexta-Feira Santa à da Ceia do Senhor. Após a oração do Pai Nosso, como na missa, mas sem o rito da fração do pão, é distribuída então a comunhão aos fiéis e, caso haja ainda hóstias consagradas, estas voltam novamente para o lugar de reposição, observando-se o mesmo rito em que foram levadas ao altar.

16 - A exemplo do rito inicial, também o rito final é simples: após a oração depois da comunhão, o sacerdote estende as mãos sobre o povo e pede a Deus a bênção sobre ele. Omite-se o rito de despedida, e todos se retiram em silêncio.


Leituras bíblicas da Sexta-Feira da Paixão:

1ª leitura: Is 52,13-53,12

 

Salmo Responsorial: 31(30),2.6.12-13.15-16.17.25 (R/. Lc 23,46)

2ª leitura: Hb 4,14-16; 5,7-9

Paixão do Senhor: Jo 18,1-19,42

 

(Clique aqui para leitura de pequena reflexão sobre a Paixão do Senhor)

João de Araújo

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