Diálogo de natal de uma família em crise

(Pequena peça em pequeno ato - Um teatrinho)

Nota explicativa

(Era Natal. Naquele ano, as coisas não iam muito bem, financeiramente, para aquela família. Acostumada à vida burguesa e alheia aos valores mais altos, não sabia, pois, enfrentar uma simples dificuldade. O “diálogo” abaixo, após o almoço, mais palavreado estéril que diálogo, mostra que até o almoço daquele dia não foi o esperado, como também a ceia da noite anterior. O ranço patriarcal do pai, alimentado ainda mais por uma mente atolada em cifras, a intolerância da mãe, a falta de simplicidade e de objetividade dos filhos, tudo contribuiu para uma fermentação materialista do encontro. Vamos acompanhar o diálogo, tentando tirar dele algo positivo, mesmo diante de suas notas doentias, e torcer para que, no próximo ano, aquela família esteja ainda de pé, para um diálogo de verdade. Sejamos também honestos e procuremos saber se a nossa participação no diálogo da vida não está também precisando de mudança para melhor).


O PAI

- Por que estão todos me olhando assim? Sou um fracassado, eu sei. O extrato não nega. Mas, se estou no vermelho, é porque a situação não me foi favorável. Afinal, se não tive sucesso, é porque ela não deixou! Ah! já sei: vocês e suas razões, hem! Já me sinto tão diminuído e ainda estão querendo vir com aquela de “papaizinho”, só para me adoçar. Se conhecessem os dados do balanço, que está para sair, certamente não fariam reivindicações. Aliás, a ceia de ontem já diz tudo, e o repeteco no almoço de hoje...


A MÃE (Interrompendo o pai)

- Você disse “ela não deixou”... Ela quem, seu sem-vergonha? Que cachorra é essa que está rondando a sua vida?


O PAI

- Não só ela, a situação geral, como regra, ó QI baixo, mas também todas as outras realidades que a explicam: a competição do mercado, a taxação dos impostos, a dificuldade de crédito, a alta dos juros, a globalização... Quer mais? Ou chega de cachorrada, Madame?


UM FILHO

- Vejo, pai, que o senhor está sentindo na pele os efeitos de um mundo em transição. Estamos já no terceiro milênio, a realidade mudou e a história é outra, não manjou? Mas, seja otimista! Afinal, nem tudo é negativo. Se o senhor ganhou menos, pagou - ou vai pagar - menos imposto de renda também. Quanto a mim, o ano inteiro fiquei sem atualização de minha mesada, o que é um absurdo, diga-se, mas... paciência, o que posso fazer?! Pobreza, ó santa pobreza!...


UMA FILHA

- Parece que nesta casa eu sou a única a fazer economia. No Shopping, só subo e desço escada rolante, como empregada de patroa feliz. Depois, quando muito, um sorvetinho! E as festas de meu aniversário então, já pensaram? Sempre aquela barateza, que não muda nunca! Para o próximo, já espero o mesmo aniversário de pobre: pãozinho de queijo, pastelzinho e guaranazinho; depois da velinha, cajuzinho e brigadeirinho; e, no final, como encerramento solene, bolinho com glacê, no guardanapinho, como manda a tradição. Enquanto isso, os aniversários de minhas colegas são sempre aquele barato! Inveja? Sim, e muita!


O PAI

- “Mundo em transição”... “barateza”... Sim, pode ser. Mas, pelo que estou vendo, vocês estão é me enrolando. No fundo, o que estão chorando é mesmo a “onça pintada”1 que não tiveram na quantidade que queriam. Juro que é. Quando as Bolsas despencam, muitos bolsos, como bons "maridos”, também sofrem: ficam mais vazios. É a lógica do Sistema, agora irreversível, e que vocês fingem não entender. Alguns bolsos, é verdade, “engordam”, mas... num mundo de 7,6 bilhões de bocas...2 Não perceberam ainda? E minha Digníssima ainda vem com aquela “conversa pra fazer boi dormir”, sem se lembrar de que um dia jurou, para Deus e para o resto do mundo: “Na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza...”


OUTRO FILHO

- Pai, se eu estivesse em seu lugar, venderia a empresa, pagaria os empréstimos e arrumaria um emprego, tá? De todo jeito, o que a gente ouve nesta casa é só um “nhem-nhem-nhem”!


A MÃE

- Isto, filho, valeu! Sempre achei que você é mais inteligente! O biruta de seu pai, quando está dormindo, ou ronca, ou tem pesadelo, testando a minha paciência.  Quando nem uma coisa nem outra, sonha que está acertando contas com credores, até com o FMI. É querer ser muito importante, não? Se gosta tanto assim de números, por que não arruma logo um serviço em escritório de Contabilidade ou de Economia, ora bolas?!...


UM OUTRO FILHO

- Na faculdade, este ano, a gente acabou de estudar técnicas de planejamento. Se vocês não se intrometessem, ano que vem eu iria planejar tudo aqui. Até as formigas planejam! Não conhecem a fábula? A cigarra cantou, cantou, sem gravar um CD, nem unzinho, sem planejamento portanto, e morreu, seca, lá na árvore. Já a formiga trabalhou, trabalhou, fez celeiro, isto é, planejou e, depois, ficou de “papo pro ar”, como brasileiros felizes nas praias de nosso imenso Brasil. Se vocês não se intrometessem - repito - veriam se no fim do ano não teríamos Perus, Panetones & Cia., a matar de inveja nossos parentes, vizinhos e amigos!


O PAI

- Cuide, rapaz, de planejar a sua vida. Já começo até a ter pena daquela moça... Dormindo até o meio dia, você não faria hoje nem para o “marido” da cigarra e já está querendo ser elogiado como as formigas! Ainda bem que não tem o vício bobo e trágico de engolir fumaça! E, olhe: muitas faculdades, meu caro, estão ensinando, primeiro, a discursar, (o que não enche barriga), e as formigas - sabe? - não fazem discurso: trabalham, trabalham e trabalham. Entendeu?


A EMPREGADA DOMÉSTICA

- Num tenho nada cum a cunversa não. Mas tô veno qui tudo aqui tá pareceno “Bom Bril”: tão inrolado, qui ninguém sabe onde o fio cumeça e onde termina!3


A MÃE

- Ninguém está pedindo a você opinião. Se já “arrumou” tudo, pode ir descansar os "cambitos", ou arruar. Um pouco de liberdade, e a corda vai longe. É isso que acontece. Gente intrometida!...


OUTRA FILHA

- Enquanto vocês estavam discutindo, eu estava pensando numa coisa: este negócio de família está ficando mesmo complicado. Aqui em casa, principalmente. É incrível: tudo parece depender de dinheiro, e vocês...


O PAI (prosseguindo, no lavatório)

- Dinheiro!... Já vem você também falar em dinheiro! Todo mundo já estava esquecendo, e agora vai começar de novo a novela. Ah! se vai! Querem saber de uma coisa? Com este Natal magrelo, esquelético, de terceiro mundo, o melhor que faço é “cair nos braços do Morfeu”. Natal é só hoje, e amanhã quem vai enfrentar o batente sou eu. Por falar em Natal...


O PAI (voltando-se do lavatório)

- Uai! Onde estão vocês? Ah! já foram ver baboseiras ou coisa semelhante! E eu fiquei aqui, no banheiro, feito bobo, falando para as paredes, como retardado!... Outro Natal virá, cambada, vocês me pagam! O Ano Novo também está chegando. Vocês não perdem por esperar!


1 - Referência à nota de R$50,00

2 - População atualizada em 2017, de acordo com relatório da ONU

3 - Linguagem usada não com preconceito, mas num contexto mais antigo, quando se notava pouca escolaridade das domésticas. 

 Nota: Alguém poderá objetar que esse texto foge um pouco do objetivo do site. Eu diria que não, por causa do sentido também religioso que se esconde nele. Eu mesmo conheci famílias vivendo os aspectos negativos no texto existentes, fora também das festas natalinas. Finalmente, o texto pode ser entendido como um "teatrinho" familiar.  

João de Araújo

 

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