O descimento da Cruz

(Cf. Mt27,57,60; Mc 15,42-46; Lc 23,50-53; e Jo 19,38-42)

Pelos registros bíblicos, sabemos que o sepultamento de Jesus se deu logo após a sua morte, esta acontecendo por volta das quinze horas, e no dia da preparação da Páscoa, segundo João (cf. Jo 19,14.31). João, em sentido mais teológico que histórico, faz coincidir a morte de Jesus com a do cordeiro pascal no Antigo Testamento (cf. Ex 12,6), e São Paulo parece também ter o mesmo entendimento (1Cor 5,7).

Irmãos e irmãs, depois de tudo consumado, depois que muitas vontades foram plenamente satisfeitas, resta agora a prática de uma das obras corporais de misericórdia: enterrar os mortos. Mas para isso é preciso descer o Senhor da cruz. E depressa, pois já é tarde, e os magistrados, os sumos sacerdotes, doutores da lei, escribas e fariseus, e toda a sorte de “justos” vão celebrar brevemente a Páscoa. E não convém que corpos fiquem na cruz, para não estragarem a festa dos “bons”, principalmente num sábado tão importante como aquele que estava chegando (cf. Jo 19,31). Um detalhe da lei: uma simples entrada num ambiente pagão impossibilitaria os soldados de comerem a páscoa (cf. Jo 18,28).

Também aqui uma lembrança, muito preciosa: muitos de seus inimigos, antes de sua morte, o tentaram a descer da cruz, ironizando-o, sob a alegação de que, se descesse, creriam nele (cf. Mt 27,42). Pura mentira inserida naquelas mentes pelo pai da mentira. Mas Jesus conhecia o íntimo de todo ser. E mais: sabia que era morrendo na cruz que ele venceria a morte, e atrairia a si todos os homens (cf. Jo 12,32-33).

Mas, vamos, deixemos que a lógica humana se embriague nos seus tonéis nefastos, quando quer, como quer e com as medidas de sua dura cerviz. Um homem se inscreveu para a tarefa: José, cidadão rico de Arimateia, discípulo também de Jesus, mas medroso como os demais discípulos. Também ele esperava a redenção de Israel. Onde está ele? Aproxima-te então, José, porque o mais importante já tens: a autorização de Pilatos para tirar o Senhor da cruz. Eis que o “homem de mãos limpas” deu-te enfim uma autorização também limpa. Podes então tirar o corpo do Senhor da cruz. Traze uma escada, para nela subires, pois o Senhor está na cruz, duplamente elevado: fisicamente, suspenso, por condenação dos homens, e elevado espiritualmente, em glória eterna, como prêmio de Deus.

Não te precipites, ó homem de Arimateia. Tirar os cravos não será difícil para ti, como cravá-los não foi difícil pelos inimigos. Tirar dá uma sensação de alívio, não? Descer um corpo inértil não é também difícil. Além do mais, ele está leve, pois nossos pecados, que carregava nos ombros, já foram dissipados. Também sangue e água saíram de seu lado (cf. Jo 19,34), em borbotões, como fonte viva (cf. Jo 7,37-38), eis então que ele agora está leve.

Não estás sozinho, ó discípulo de Arimateia. Um outro, da turma dos poderosos, mas simpatizante do Senhor, está à tua disposição, atento às tuas ordens, para sepultar o Senhor. Antes, soldados cumpriam as ordens dos grandes, para crucificar o Inocente de Deus, mas agora não o podem sepultar, porque, sepultar alguém, é obra de misericórdia, como se expôs antes, e servidores da opressão nem sabem o que é misericórdia. Nicodemos, o outro, sem agora esperar pela noite (cf. Jo 3,2), já veio (cf. Jo 19,39), e espera, ansioso, com suas cem libras de mistura de mirras e aloés, para o sepultamento.

Nicodemos, pois, já sabe, José: é em túmulo novo, talhado na rocha, e com “lençol limpo” que o Senhor será sepultado (cf. Mt 27,59-60). Interessante: em vida ele não tinha onde reclinar a cabeça (cf. Mt 8,20), mas na morte é sepultado com “lençol limpo” e em “túmulo novo”, o que lhe dá, no contexto, uma aparência de nobre, dizem os entendidos.

Mas não divaguemos. Depressa, pois, José, tira então o cravo de sua mão direita. Desprende-a. Pregada, é verdade, não punia, mas solta será mais livre para abençoar e para se abrir sempre em sublimes gestos de redenção. Desprende então essa mão que tanto bem fez a tantas mãos, que tantos pães multiplicou e que tantas vidas fez renascer. Faze o mesmo, José, com a outra mão, a esquerda. Desprende-a. Tira o cravo que a mantém presa. Assim, agora, braços e mãos do Salvador devem ficar novamente livres.

Mas, agora, ministros do sepultamento, esperai um instante. Vamos desprender também nossos braços e nossas mãos. Eles podem estar amarrados e presos aos ditames do mundo. Vejamos então nosso braços: ei-los quase sempre cruzados, indiferentes e omissos. É preciso então que se desprendam, para que possam abraçar, principalmente os fracos e oprimidos, indefesos e pobres, e mesmo os nossos inimigos. E nossas mãos? Ei-las fechadas, rígidas, prontas tantas vezes para agredir. Vamos abri-las, em sinal solidário, e assim estendê-las, seja para acolhimento, seja para oferecer, seja para suplicar ou para elevar-se, em louvação.

Entendamos então, irmãos e irmãs, entendamos: Deus quer que nossas mãos sejam sempre benditas. Que acolham, amparem e elevem então tantas mãos, já tão fracas e sem vigor! Benditos também sejam os nossos braços! Que eles soergam, segurem e deem firmeza a outros braços tão frágeis. Braços e mãos, pois, solidários, sobretudo quando os deixamos crucificar pelos nossos irmãos mais sofredores.

Continua então agora, José, o descimento da cruz. Sim, os pés de Jesus ainda se encontram cravados. Duramente cravados. Pregos pontiagudos os mantêm seguros no lenho da morte. É preciso, pois, desprendê-los. É preciso que lhes devolva a liberdade. Pés que, nas estradas poeirentas da Terra Santa, deixaram rastros de eternidade. Pés que, pisando o chão bendito de nossa terra, tornaram também bendito todo o nosso solo. Pés que, ao contrário, não pisaram a dignidade humana e não feriram a pequenez dos pobres, dos humildes e dos sem-vez e sem-voz. Pés enfim que caminharam só por estradas de paz e que não recusaram ir até ao Calvário para então lá ser cravados pela impiedade dos homens.

Agora, eis que no Corpo do Senhor vemos então, finalmente, as chagas de seu amor crucificado. São as chagas dos pés, das mãos e do lado. O que faremos delas? Não as cubramos, não as escondamos, mas as veneremos, isto sim. O Senhor se orgulha delas, pois são chagas benditas de sua Paixão. São chagas que curam as nossas chagas (cf. 1Pd 2,24). Contemplando o Crucificado, vamos então contemplá-las também, pois são chagas de redenção, feridas gloriosas, as quais virão certamente amenizar os instantes de dor em nossas vidas.

Reflitamos, agora, irmãos e irmãs, reflitamos agora mais um pouco então sobre nós mesmos, sobre os nossos pés, quem sabe? Sim, sobre os nossos pés. Onde têm eles pisado? Caminhos de paz e de luz, ou caminhos tortuosos, de vícios e de trevas? Estradas de cruz ou tapetes da omissão? Ao encontro dos pobres, de irmãos desolados, aflitos, presos e oprimidos, doentes, sedentos e famintos, nos quais o Senhor se acha presente, e que, por causa deles, nos dará o prêmio eterno (cf. Mt 25,31-36), ou andamos ao encontro de bajuladores, de falsos amigos e de enganadores, que costumam alegrar-nos, mas em segundos de nossa vida?

Sim, ó irmãos de caminhada e peregrinos da esperança, vejamos ainda onde pisam, pois, os nossos pés? No chão da verdade e da compreensão, do perdão e da bondade, ou no chão da mentira e da indiferença, do ódio e da maldade? E nossas mãos, como se encontram elas? Fechadas na rigidez de mãos opressoras, como as dos ímpios, ou abertas e estendidas para o perdão, para a acolhida e para o serviço fraterno, como as mãos dos eleitos de Deus?

Voltemos então, caríssimos, o nosso olhar para o Senhor. Agora, tirados dos pés e das mãos os cravos doloridos, eis então descido da cruz o seu corpo exânime. Corpo massacrado, dilacerado e ferido por causa de nossos pecados. Sim, porque todas as nossas misérias e iniquidades caíram sobre ele. Homem das dores, habituado ao sofrimento (cf. Is 53,3), mas que não recuou, a fim de nos salvar. Que nossos corpos (frágeis, doentes, cansados, feridos, humilhados ou corrompidos) recebam a vitalidade divina desse corpo bendito. Pois nós sabemos: dentro de poucas horas ressuscitará e, ressuscitando, conduzirá ao Pai todos nós, como ovelhas de seu rebanho e na alegria sem fim de sua glória pascal. Amém.

Nota: Três procissões são consideradas de valor litúrgico. São elas: a procissão de ramos, a da transladação do Santíssimo na Quinta-Feira Santa e a do Círio Pascal (Lucernário) na Vigília Pascal do Sábado Santo. Três também são as de fundo piedoso e de devoção pessoal: a procissão do encontro, a do enterro e a da ressurreição, esta após a Vigília Pascal do Sábado Santo. Também a Via-Sacra pode aqui ser colocada  como exercício piedoso e orante. Geralmente ela rezada em todas as sextas-feiras da Quaresma, como também na Sexta-Feira da Paixão.

 

BIBLIOGRAFIA PARA TODA A SEMANA SANTA:

Missal Romano
Liturgia das Horas (Ofício das Leituras)
Bíblia de Jerusalém
Diretório da Liturgia – CNBB
Guia Litúrgico-Pastoral – CNBB
Um Cristo Crucificado na Semana Santa – (Raymond E. Brown – Editora Ave Maria)
O Evangelho de Marcos – Myers, Ched - Paulinas
O Evangelho de Mateus - Carter, Warren - Paulus
O Evangelho de São João - Mateos, Juan, S. J. - Paulus 

João de Araújo

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