Pequeno estudo sobre os Salmos

INTRODUÇÃO

1 - Chama-se Saltério a coleção dos 150 salmos, compostos no Antigo Testamento, em épocas quase sempre desconhecidas. Saltério é palavra grega, propriamente nome de instrumento de cordas. Nascidos e rezados muitas vezes na dura realidade da vida, os salmos chegaram até nós com o mesmo valor orante. A Igreja deles se serve nas celebrações litúrgicas, sobretudo na Liturgia das Horas e na Missa. Na verdade, a Igreja faz do Saltério as entranhas da liturgia e do Ofício Divino e, assim, a linha sálmica sempre foi considerada fundamento da oração cristã, consciência que se desenvolveu ainda mais com a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II.

2 - Nos salmos se encontram todas as vicissitudes da vida humana, desde os brados de angústia, de aflição, de fracassos e de prantos, até os felizes hinos de louvor, de ação de graças, de exultação, de vitória, de reconhecimento, como também de admiração e de contemplação das maravilhas de Deus. O que se diz aqui poderá depois ser percebido com mais clareza na classificação dos salmos.

3 - Salmo é palavra de origem grega. Significa “cântico ao som de instrumentos”. Mas a língua-mãe dos salmos é o hebraico, onde eles são chamados de Tehillim, ou seja, hinos, mas aqui nome que só se aplica a certo número de salmos. Os salmos são a mais rica coleção de orações e de cantos já conhecida. Apesar de antigos, são sempre atuais, capazes então de falar à sensibilidade humana em todos os tempos e lugares. São uma fonte de espiritualidade, que não se esgota, levando-nos a crer, com a fé da Igreja, que se trata de textos com viva e nítida inspiração divina.

4 - Como já foi observado, os israelitas nasciam com o salmo nas entranhas e no coração. Daí, seu espírito profundamente religioso e sua intimidade nas relações com Deus. Eis um exemplo sálmico: "Eu te celebro por tanto prodígio, e me maravilho com as tuas maravilhas!" (Sl 139,14). Nos salmos, o nome Javé é sempre lembrado como o Deus que libertou o povo do Egito, por isso foi sempre invocado para libertar novamente seja o povo, seja o próprio salmista, em situações de conflito e de insegurança. E a Igreja, em sua peregrinação orante rumo à Pátria definitiva, rezando os salmos em dimensão cristológica, expressa a sua confiança no mesmo Deus libertador também para os dias de hoje.

NUMERAÇÃO DOS SALMOS

5 - Há duas dificuldades com relação ao estudo dos salmos e que devem ser superadas pela nossa paciência. A primeira diz respeito à tradução da Bíblia em geral. A tradução é diferente em muitas edições. Isto quer dizer que o texto bíblico não confere em todas as bíblias. A segunda dificuldade está ligada aos próprios salmos, porque temos traduções do hebraico e do latim. Explicando: nos oito primeiros salmos não existe dificuldade. Todas as traduções têm a mesma numeração. A partir daí começam os problemas, porque, seguindo o que fez a mais antiga tradução grega, chamada “Setenta”, (Septuaginta) as traduções feitas para o latim e do latim unem num só os salmos 9 e 10 da fonte hebraica.

6 - Continuando a constatação, vê-se que, a partir do salmo 9 até o salmo 113, a numeração hebraica está um número à frente da tradução latina, continuando o mesmo do salmo 117 ao 146. Da fonte hebraica, a versão latina fez ainda as seguintes transposições: dos salmos 114 e 115, o salmo 113; do salmo 116, os salmos 114 e 115; e, finalmente, do salmo 147 os salmos 146 e 147. De 148 a 150, a tradução volta à normalidade, como nos oito primeiros salmos. Na leitura prática, podemos ver então assim: se o salmo do Bom Pastor, por exemplo, consta numa bíblia com a numeração 23(22), então a bíblia é de tradução hebraica; constando 22(23), a tradução é latina. Neste estudo, a citação de salmo será sempre da numeração hebraica. Dá-se abaixo o esquema das traduções.

Numeração hebraica Numeração latina
1 a 8 1 a 8
9 e 10 9
11 a 113 10 a 112
114 e 115 113
116 114 e 115
117 a 146 116 a 145
147 146 e 147
148 a 150 148 a 150

SEMANAS DO SALTÉRIO


7 - Na Liturgia das Horas, e que se aplica também para o Ofício Divino das Comunidades, o Saltério encontra-se distribuído em quatro semanas, chamadas de “Semanas do Saltério” (1ª, 2ª, 3ª e 4ª). Os salmos inseridos no Ofício Divino das Comunidades são 140, e na Liturgia das Horas são 147. Geralmente as Semanas do Saltério se iniciam no início também de um tempo litúrgico, como Advento, Quaresma, Tempo Pascal, Tempo Comum etc., voltando-se novamente à primeira semana no fim da quarta, e assim por diante. Com essa distribuição, é possível rezar quase todos os salmos num pequeno intervalo de quatro semanas, visto que a Liturgia das Horas é constituída de vários momentos durante o dia, e em todos eles se faz presente a salmodia.

SENTIDO CRISTOLÓGICO DOS SALMOS

8 - A Liturgia, que tem como centro o Mistério Pascal de Cristo, pedagogicamente sempre usa o salmo em sentido cristológico. Vê-se, pois, que o Saltério é um livro profético e messiânico, orientado na direção de Cristo e que gravita em torno dele, realizando-se nele, conforme Ele próprio afirma em Lc 24,44. Podemos afirmar que a dimensão cristológica, isto é, a sua cristalização na vida de Cristo, dá aos salmos sentido pleno e eficácia maior ainda para a edificação da vida cristã. “Rezados e realizados em Cristo, os Salmos são sempre essenciais à oração de Sua Igreja” (cf. CIC n. 2586).

9 - Na fé da Igreja, o fundo cristológico dos salmos segue uma dupla direção, como ensinam os Santos Padres. A mais frequente é a ascendente, ou seja, a direção de baixo para cima. Aqui, na voz do autor sálmico percebe-se a voz de Cristo dirigida ao Pai. No homem perseguido, caluniado e aflito, a Liturgia como que ouve o Cristo padecente, o Servo de Javé, em sua situação de kénosis, ou seja, de humilhação e de despojamento. É o caso, por exemplo, do salmo 22, em diversas aplicações, como a experiência de Cristo no abandono (“Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste”?), e a das próprias vestes repartidas, descritas no mesmo salmo (v. 19), profecia no Calvário realizada, como se vê em Jo 19,24.

10 - Também na compreensão cristológica dos salmos, podemos ver Cristo não escapando à dor suprema da traição de amigos. Há séculos os salmos já conheciam esse sofrimento, como se vê em 41,10 e em 55,13-15, em lamentos do salmista, o que nos leva a afirmar que esse sofrimento é de âmbito universal. No comportamento de Judas Iscariotes, Cristo sofre essa traição descrita nos salmos, e Pedro, com suas negações, não deixa de expressar também uma verdadeira traição ao Senhor. Mas também nós, em nossos comportamentos, muitas vezes traímos a amizade de nosso Salvador, uma vez que, não vivendo o testemunho cristão, vamos contra o seu modelo de vida, que é de amor e de fidelidade ao projeto Pai.

11 - A outra linha cristológica dos salmos segue uma direção descendente, ou seja, de cima para baixo. Cristo já não é considerado então embaixo, na humilhação e no despojamento (Kénosis), mas em cima, em sua glorificação. A voz então que se ouve no salmo é a da Igreja, ou do fiel, que se dirige a Cristo, aqui, pois, não mais sujeito, mas destinatário, objeto do salmo. Santo Agostinho, unindo as duas direções, diz: “O salmo é a voz do Cristo Total, Cabeça e Corpo”. Entendamos: é a voz de Cristo e da Igreja.

OS SALMOS NA LITURGIA

12 - Na celebração da Eucaristia são previstos quatro momentos em que se usa o salmo: no canto de entrada, após a primeira leitura (Salmo responsorial), na procissão das oferendas e na Comunhão. (cf. IGMR n. 48, 61 e 87). Para os três cantos processionais aqui referidos, pode-se usar a antífona com o seu salmo, do Gradual Romano (antigo) ou do Gradual simples (de 1967). O Salmo responsorial faz parte integrante da Liturgia da Palavra, não podendo por isso ser omitido. É prolongamento da palavra bíblica, em sentido poético e lírico, tendo portanto o mesmo valor das leituras bíblicas. É também canto de repouso e de meditação. No exercício de seu ministério, o salmista deve, pois, cultivar a espiritualidade sálmica, revelando familiaridade com a tipologia do salmo e como que encontrando nele a sua própria voz e seu próprio sentimento.

13 - Na Liturgia, o salmo tem os nomes de "Responsorial", de "Salmo", simplesmente, e também de "Cântico Bíblico". Este último, não sálmico, como é o caso do Cântico de Moisés (Ex 15) e do Cântico de Isaías (Is 12), usados na salmodia da Vigília Pascal do Sábado Santo, como exemplos. Mas há ainda outros cânticos bíblicos, não sálmicos, é claro, e que, na Liturgia das Horas, entram também como textos de salmodia. De fato, o segundo texto da salmodia das Laudes (Oração da Manhã) é um cântico do Antigo Testamento, geralmente dos profetas, e o terceiro texto da salmodia das Vésperas (Oração da Tarde) é sempre do Novo Testamento, ora das epístolas, ora do Apocalipse (cf. IGLH n. 43).

14 - Chamava-se também o salmo, antes do Concílio Vaticano II, "Gradual" e "Trato". Gradual (do latim gradualis) significa degrau, porque o salmista cantava o salmo no degrau abaixo de onde o leitor proclamava a primeira leitura. E "Trato" (do latim tractus = forma direta), porque se cantava sem antífona, na liturgia da Quaresma, em lugar do Aleluia, à semelhança da aclamação quaresmal de hoje.

15 - Na Liturgia das Horas, o salmo, além da antífona, no início e no fim, encerra-se também com o "Glória ao Pai..." , que confere aos escritos do Antigo Testamento um caráter trinitário. Já as leituras (bíblicas, patrísticas, hagiográficas e espirituais) são seguidas de um responsório, não somente sálmico, mas também com texto dos profetas, dos livros sapienciais, do evangelho, das epístolas e do Apocalipse, notando-se que, às vezes, num mesmo responsório, vamos encontrar passagens bíblicas paralelas, compiladas em unidade bíblica, ou então simplesmente como fontes de inspiração.

SALMODIA - MANEIRAS DE CANTAR, RECITAR OU REZAR OS SALMOS

16 - Há diversas maneiras de salmodiar, como abaixo se explica. Em todas elas, deve-se levar em conta, sempre, o caráter musical dos salmos. Estes, como ensina a Instrução Geral sobre a Liturgia das Horas, "não são leituras nem orações compostas em prosa; são poemas de louvor" (IGLH 103).

17 - Neste estudo queremos considerar cinco maneiras de salmodiar. Temos então: a forma direta, a responsorial, a antifonal, a coral e a interiorizada.

a) - Forma direta: É aquela em que não se intercala antífona ou refrão entre as estrofes, como no caso do Tractus. Como o nome indica, as estrofes são cantadas seguidamente, podendo alternar-se: voz masculina x voz feminina. É mais aconselhável o uso dessa forma na Liturgia das Horas.

b) - Responsorial: Esta forma é de origem judaica, com a resposta da assembléia, como se usa sempre na Missa. O salmista canta ou recita, no início, o refrão, com o qual o povo responde, na mesma tonalidade. Depois, o salmista prossegue cantando ou recitando as estrofes, intercaladas com o refrão, aqui repetido somente pela assembleia.

c) - Antifonal: Já esta forma é de origem monástica. Muito usada portanto em mosteiros. Consiste na inserção, entre as estrofes, de uma antífona, em dois coros.

d) – Coral e alternada: Consiste esta modalidade em cantar o salmo, alternadamente, pelo coro, em duas partes: uma de pé, e outra assentada, alternando-se também a postura corporal.

e) - Interiorizada: Esta maneira de salmodiar é um costume antigo. Favorece a dimensão contemplativa do salmo. Durante a execução da salmodia, costuma-se ficar assentados e, depois do salmo, todos se ajoelham, ou prostram-se por terra, invocando cada um dos participantes por si mesmo a misericórdia divina, no mais profundo silêncio.

18 - Nas diversas formas indicadas - diga-se - é preciso atender ao gênero literário do salmo, ou seja, suas qualidades literárias e históricas, como também sua musicalidade. Na Liturgia, propõe-se que o salmo seja sempre cantado. Na impossibilidade do canto, seja então recitado, dada a sua qualidade poética e musical. Não seja então simplesmente lido, como tantas vezes acontece.

19 - As antífonas, os títulos e as sentenças bíblico-patrísticas antes do salmo, na Liturgia das Horas, ajudam a perceber a sua dimensão cristológica. No mesmo sentido, no Ofício Divino das Comunidades, antes do salmo é de grande importância a passagem bíblica que o situa ou o identifica nos sentimentos e na realidade da Nova Aliança. Cristo mesmo diz que os Salmos falam dele (cf. Lc 24,44), como vimos antes, e Ele mesmo, na cruz, rezou o início do Sl 22 (cf. Mt 27,46; Mc 15,34). Também o texto colocado pela Igreja, no Ofício das Comunidades, antes do salmo, orienta-nos para a sua aplicação prática no hoje de nossas vidas.

ORAÇÕES SÁLMICAS

20 - “No suplemento do livro da Liturgia das Horas, para cada salmo se propõem orações sálmicas, a fim de ajudar quem os recita a interpretá-los sobretudo em sentido cristão. Podem ser usadas livremente, conforme antiga tradição: concluído o salmo e após certa pausa de silêncio, a oração resuma e conclua os sentimentos dos participantes” (cf. IGLH n. 112). O que aqui se diz foi muito observado desde o século IV, tanto no Oriente como no Ocidente, mas sobretudo em ambientes monásticos. Tais orações são de conteúdo densamente teológico.

21 - Da oração silenciosa, passou-se depois à improvisação de uma oração em voz alta, resumindo em poucas palavras o resultado da meditação. No Brasil, é mais ou menos isso que se propõe hoje no Ofício Divino das Comunidades. Em segundo momento, esta prática deu origem à redação de Orações sálmicas, mas estas tiveram grande dificuldade de firmar-se na liturgia oficial. “A liturgia hispânica foi a única que conservou seu uso na Liturgia das Horas”.

22 - No Brasil, não temos disponível esse suplemento das orações sálmicas para a Liturgia das Horas, mas orações deste tipo aparecem na Liturgia da Palavra da Vigília Pascal do Sábado Santo. Aí são sete as leituras bíblicas do Antigo Testamento, cada uma seguida de um Salmo Responsorial próprio, no fim do qual aparece então a oração sálmica, concluindo e resumindo, no caso não somente o salmo, mas também a leitura bíblica que o precedeu.

23 - Na Vigília Pascal, as orações sálmicas são presidenciais, respondendo a assembléia com o “Amém” conclusivo, ratificando-as. Mas, atenção: não devem ser confundidas com a Oração do dia. Depois da última oração sálmica, canta-se solenemente o Glória e, depois deste, reza-se então a Oração do dia.

24 - Tais orações sálmicas da Vigília Pascal, além de muito favorecer a compreensão da história da salvação, operada no passado, fazendo memória dela, também pedem a Deus que volte a realizar hoje as mesmas maravilhas, operando vivamente a salvação de seu povo. Podemos então concluir: terminadas as leituras do AT (de natureza histórica, profética e de promessa), as orações sálmicas, com sua natureza epiclética, isto é, de súplica, certamente nos ajudam a passar para a realidade pascal do NT, que se vê na temática da leitura seguinte de Rm 6, sobre o Batismo. A partir daí, em todo o Tempo Pascal, que se encerra em Pentecostes, todas as leituras bíblicas vão ser do NT.


SISTEMATIZAÇÃO E CLASSIFICAÇÃO DOS SALMOS (5 classes e 14 tipos)

25 - Para uma compreensão mais objetiva e sistemática dos salmos, sobretudo como hoje eles são estudados, rezados e interpretados, os gráficos seguintes tentam colocá-los numa linha pedagógica, sistematizando-os em cinco classes e classificando-os em quatorze tipos, sem excluir outras possíveis classificações e tipologias, às vezes mais claras, objetivas e autorizadas. Para a sistematização dos quadros abaixo, muito me servi do precioso livro de José Bortolini “Conhecer e Rezar os Salmos”, páginas 17 e 18. Vejamos então:

 

Classes
 Hinos Salmos individuais Salmos coletivos Salmos régios  Salmos didáticos


As classes podem por sua vez ser subdivididas em tipos, assim:


Primeira classe: HINOS


Tipos
 Hinos de louvor  Salmos da realeza do Senhor Cânticos de Sião
Sl 8, 19, 29, 33, 100, 103, 104, 111, 113, 114, 117, 135, 136, 145, 146, 147, 148, 149 e 150 Sl 47, 93, 96, 97, 98 e 99 Sl 46, 48, 76, 84, 87 e 122
Soma: 19 Soma: 6 Soma: 6

26 - Os hinos de louvor têm como característica principal o louvor a Deus pelas suas ações na história, libertando o povo em seus conflitos e em suas tribulações. Quando rezá-los: Para agradecer a bondade divina, a obra da criação e da redenção, a predileção para com os pobres etc..

 

27 - Já os salmos da realeza do Senhor são aqueles que insistem na expressão “Javé é Rei”. Devemos rezá-los diante de conflitos internacionais, para que haja paz no mundo, nas irresponsabilidades de governos prepotentes, como também na grave situação ecológica etc..

28 - “Cânticos de Sião” são aqueles salmos que têm como tema central a cidade de Jerusalém, também chamada de Sião. Devemos rezá-los tendo em vista cidades com graves problemas, como violência urbana, falta de moradia, de serviços de saúde pública, de escolas etc..


Segunda classe: SALMOS INDIVIDUAIS

 

Tipos
Súplica individual Ação de graças individual Confiança individual
Sl 5, 6, 7, 10, 13, 17, 22, 25, 26, 28, 31, 35, 36, 38, 39, 42, 43, 51, 54, 55, 56, 57, 59, 61, 63, 64, 69, 70, 71, 86, 88, 102, 109, 120, 130, 140, 141, 142 e 143 Sl 9, 30, 32, 34, 40, 41, 92, 107, 116 e 138 Sl 3, 4, 11, 16, 23, 27, 62, 121 e 131
 Soma: 39 Soma: 10 Soma: 9

29 - Como se vê, os Salmos de súplica individual são os mais numerosos (39). Parece que é assim em todos os tempos: o “peditório” marca a vida de cada um de nós. Nesses salmos, uma pessoa suplica a Javé, em tom de clamor, quase sempre por causa da injustiça e de mil formas de opressão. Devemos rezá-los nas necessidades pessoais, como fragilidade física, injustiças sofridas, perda da esperança, desemprego, incompreensões, etc..

 

30 - Com relação ainda aos Salmos de súplica individual, devemos observar os salmos 22 e 130 em suas peculiaridades. O primeiro rezamos nos momentos em que nos sentimos pessoalmente como que abandonados, até mesmo por Deus, como rezou Cristo na cruz. Já o salmo 130 podemos rezar em situações de profunda amargura, como, por exemplo, quando nos sentimos infinitamente distantes de Deus, principalmente numa vida encharcada no pecado. “Clamar das profundezas”, como diz o salmo. Outra observação: às vezes um salmo de súplica individual na verdade é de súplica coletiva. É o caso, por exemplo, do Salmo 77. Nele, uma pessoa clama a Deus, em nome do povo, diante de um mal geral, como uma epidemia, uma catástrofe natural, uma guerra etc..

31 - Com referência aos salmos de Ação de graças individual, percebe-se que uma pessoa, após ter suplicado e ter sido atendida, apresenta a Deus a sua ação de graças, o seu agradecimento. Às vezes, porém, a ação de graças vem logo depois do pedido, deixando transparecer que o salmista agradece antes mesmo de ser atendido, dada a sua forte esperança em Javé. Mas, como se vê, os que agradecem são menos numerosos que os que suplicam. Podemos rezá-los na superação de toda necessidade pessoal, reconhecendo o amor de Deus por nós, em pura gratuidade. Também rezá-los pelo dom da vida, agradecendo na verdade todos os dons de Deus.

32 - Já nos salmos de Confiança individual, o salmista coloca em Deus sua inteira confiança. São salmos que devemos rezar quando queremos manifestar a nossa fé no meio das lutas, a nossa confiança no Deus amoroso e providente, a nossa certeza de que Deus nunca nos abandona.

Nota: O “nós” que aparece nas ações requeridas pelos Salmos individuais deve ser entendido, é lógico, no singular, ou seja, no “eu” de cada um de nós, distinguindo-se assim dos Salmos coletivos.

Terceira classe: SALMOS COLETIVOS

Tipos
Súplica coletiva Ação de graças coletiva Confiança coletiva
Sl 12, 44, 58, 60, 74, 77, 79, 80, 82, 83, 85, 90, 94, 108, 123, 126 e 137 Sl 65, 66, 67, 68, 118 e 124 Sl 115, 125 e 129
 Soma: 17 Soma: 6 Apenas 3

33 - Nota-se que a tipologia dos Salmos coletivos tem a mesma estrutura dos Salmos individuais. Nos de Súplica coletiva trata-se de um clamor de um grupo de pessoas diante das injustiças e das maldades humanas. Os salmos de Súplica coletiva superam também, numericamente, os de Ação de graças e os de Confiança coletiva, trazendo a mesma “lógica” dos Salmos individuais, ou seja, que o “peditório’ não nos marca só individualmente, mas também de maneira coletiva. Como são de súplica coletiva, devemos rezá-los juntos, em família ou em comunidade, numa só prece, sempre em vista de necessidades coletivas.

34 - Inversamente aos de Súplica coletiva, nos salmos de Ação de graças coletiva um grupo agradece a Deus a superação de um conflito ou um dom recebido. Exemplo mais nítido de ação de graças coletiva é o Sl 118, o qual devemos rezar mais especialmente no Tempo Pascal: “Dai graças ao Senhor, porque Ele é bom, eterna é a sua misericórdia!” (Na tradução mais comum, o “eterna é a sua misericórdia” ressoa como refrão vivamente na Liturgia).

35 - Finalmente, nos salmos de Confiança coletiva um grupo também demonstra sua inteira confiança em Deus. São apenas 3 os salmos desse tipo, correspondendo na verdade apenas a um terço dos de Confiança individual. Devemos rezá-los na mesmas situações dos de Confiança individual, apenas mudando a situação de individual para coletiva.

Quarta classe: SALMOS RÉGIOS – Apenas 1 tipo: Régios

 

 Sl 2, 18, 20, 21, 45, 72, 89, 101, 110, 132 e 144 
Soma: 11

36 - Nos chamados “Salmos régios”, o personagem central é a pessoa do rei. Esses salmos estão cheios de ideologia, uma vez que defendem a monarquia como instituição divina. Além disso, os reis são chamados de “filhos de Deus”. O primeiro Salmo régio (n. 2) é o mais citado no Novo Testamento. Jesus é apresentado como Filho de Deus (cf. Mc 1,1). Mas Jesus muda inteiramente a maneira de entender a realeza: deve ser serviço à vida para todos. Sobre isso, é esclarecedor o diálogo dele com Pilatos (cf. Jo 18,33-38a). Conforme diz muito bem o Pe. José Bortolini, “Jesus, portanto, quebrou a espinha dorsal da ideologia monárquica presente no Salmo 2, dando nova dimensão ao poder”. Então, entendamos: o Reino de Deus é serviço de amor à vida, em sentido absoluto, pois Deus é VIDA, não podendo então jamais o reino divino ser dominação dos fortes sobre os fracos.

37- Devemos rezar esses salmos: para que cresça a formação política de nosso povo; na ausência de consciência política de nossos governantes; diante da falta de verdadeira autoridade; para que os imperialismos do mundo sejam superados pela grandeza do amor e pelo respeito às nações não desenvolvidas. Em resumo: para que todos os que governam imitem a realeza do Senhor crucificado e glorificado, a qual consiste em servir e voltar-se sobretudo para os mais pobres, necessitados e excluídos.


Quinta classe: SALMOS DIDÁTICOS

 

Tipos 
Liturgias Denúncias proféticas Salmos históricos Salmos sapienciais
Sl 15, 24 e 134 Sl 14, 50, 52, 53, 75, 81 e 95  Sl 78, 105 e 106 Sl 1, 37, 49, 73, 91, 112, 119, 127, 128, 133 e 139
Apenas 3 Soma: 7  Apenas 3 Soma: 11

 

38 - Os salmos do tipo “Liturgia”, como se vê, são apenas três. Tais salmos mostram um fragmento de liturgia antiga, da qual pouco ou nada se sabe. Podemos rezá-los pensando em nossas celebrações, também nas de cunho popular, como novenas, em peregrinações etc..

39 - Os de denúncia profética são os salmos muito identificados com a linguagem dura dos profetas, como Amós, por exemplo, fazendo da denúncia das injustiças a sua preocupação principal. Assim, inspiram-nos a rezá-los diante das graves situações de desigualdade social de nossas cidades e de nosso país, denunciando as situações de pecado e anunciando, com firmeza, a justiça divina, que jamais legitima tais situações de desamor e de descuido para com a pessoa humana.

40 - Já os Salmos históricos contam a história do povo de Deus. São salmos longos, porque a narração histórica supõe textos longos. Em extensão de textos, são apenas superados pelo Sl 119, este, porém, como salmo sapiencial. Podemos rezá-los quando queremos falar de nossa história: pessoal, familiar, de nosso grupo, de nossa comunidade, de nossa pastoral, e até mesmo de nosso país, agradecendo todas as coisas boas por Deus concedidas, como também a superação de todas as dificuldades.

41 - Na classe dos Salmos didáticos, temos, finalmente, os Salmos sapienciais. São salmos que tratam das questões existenciais, como o sentido da vida, a ilusão das riquezas, a instabilidade do mundo e da vida, a limitação humana, a falta de segurança etc.. Como são sapienciais, podem ser rezados sempre. Quanto ao Sl 91, ele parece ser um salmo de confiança individual, mas não é o salmista quem expressa sua própria confiança em Deus. Ele insiste na proteção divina para a pessoa à qual ele se dirige, e que deve ser entendida como qualquer pessoa, deixando, porém, claro que é preciso que ela viva à sombra de Deus, isto é, que seja justa e fiel.

42 - Levando em consideração a livre opinião de biblistas quanto à tipologia diversificada de vários salmos, aqui então, dado o que se falou acima, parece ser mais lógico realmente considerar o salmo 91 como sapiencial, aceitando a nota de rodapé da Bíblia de Jerusalém, que diz: “Este salmo desenvolve o ensinamento tradicional dos Sábios sobre a proteção divina concedida ao justo”. O destaque aqui para o Sl 91 é porque ele está muito presente na vida do povo, sobretudo pela crença no anjo da guarda, que já se encontra em Gn 24,7 e que o salmo lembra no vv. 11-12. No episódio das tentações no deserto (cf. Mt 4,6 e Lc 4,10-11), Jesus rejeitou a compreensão literal e maliciosa do demônio com relação ao verdadeiro sentido da proteção de Deus de que fala o salmo 91. No oráculo divino dos vv. finais do salmo (14-16), supõe-se que o fiel conhecerá a provação, mas que Deus o libertará dela.

43 - Os salmos 105, 106 e 132 podem ser lidos também em tipos diferentes. Assim, o salmo 105, por exemplo, embora pareça um hino de louvor nos primeiros versículos, na verdade é mais um salmo histórico, como se pode ver nos versículos restantes. Quanto ao salmo 106, podemos dizer que é histórico na sua maior parte (vv. 7-46), mas antes e depois pode ter outras classificações. Também o salmo 132 mistura vários tipos. É salmo Régio, como também “Cântico de Sião”, mas pode ainda ser classificado com o tipo “Liturgia”, notando-se que faz parte também da coleção “Cânticos para as subidas”. É certo também considerar certos hinos de louvor como históricos, como é o caso dos Salmos 111, 114, 135 e 136.

44 - O salmo 119 é o mais longo de todos, com 176 versículos, dispostos em 22 blocos de 8 versículos cada. Cada bloco constitui então um fragmento do salmo, que é rezado na salmodia da Liturgia das Horas. Embora traga muitos pedidos, é um salmo sapiencial. Começa também com uma bem-aventurança, a exemplo do Salmo 1 (“Felizes os íntegros...”). Já o salmo 117 é o menor de todos, com apenas 2 versículos.

45 - A soma final dos salmos, conforme os gráficos, é de 147, isto porque os Salmos 58, 83 e 109 foram excluídos neste estudo, dada a predominância neles do caráter imprecatório. Tais salmos, devido a certa “dificuldade psicológica”, foram omitidos no Saltério corrente da Liturgia das Horas (cf. IGLH n. 131), como também no Ofício Divino das Comunidades. Mas, uma observação: dada a dramática situação em que se encontravam os autores de tais salmos, é notável a confiança deles no Deus da Aliança.

COLEÇÕES SÁLMICAS E ORGANIZAÇÃO EM LIVRINHOS

46 - Compostos num período aproximado de seiscentos anos, os salmos, antes ainda de serem divididos em cinco livrinhos, como se verá abaixo, faziam parte de pequenas coleções sálmicas. Assim, lemos em Sl 72,20: “Fim das orações de Davi, filho de Jessé”. Os salmos 50 e 73-83 pertencem à coleção de Asaf. À coleção dos filhos de Coré (mestres do coro), pertencem os salmos 42-49; 84-85; e 87-88. Já os salmos 120-134 fazem parte da coleção de “Cânticos para as subidas”, usados por romeiros que iam a Jerusalém para as festas anuais. Os israelitas cantavam tais salmos enquanto subiam os degraus do Templo de Jerusalém. Finalmente, a coleção do Hallel (cânticos de louvor), é constituída dos salmos 105-107; 113-118; 135-136 e 146-150.

47 - Os salmos foram organizados em cinco livrinhos, indicando certamente uma imitação da Torá ou Pentateuco (que são os primeiros cinco livros da Bíblia). Organizados assim, esses cinco livrinhos terminam sempre com uma breve doxologia (aclamação de louvor). Vejamos sua organização:

Primeiro livrinho: Salmos 1-41 – Doxologia: Sl 41,14: “Bendito seja Javé, o Deus de Israel, desde agora e para sempre! Amém! Amém”!

Segundo livrinho: Sl 42-72 – Doxologia: 72,18-20: “Bendito seja Javé, o Deus de Israel, porque só ele realiza maravilhas! Para sempre seja bendito o seu nome glorioso! Que toda a terra se encha com a sua glória! Amém! Amém! (Fim das orações de Davi, filho de Jessé”).

Terceiro livrinho: Sl 73-89 – Doxologia: Sl 89,53: “Bendito seja Javé para sempre! Amem! Amém!”

Quarto livrinho: Sl 90-106 – Doxologia: 106,48: “Bendito seja Javé, Deus de Israel, desde sempre e para sempre! E todo o povo dirá: Amém”!

Quinto livrinho: Sl 107-150 – A Doxologia desses salmos é todo o salmo 150, como um hino de louvor. Ele encerra o louvor da manhã dos judeus.

CONCLUSÃO

48 - É interessante notar que o Saltério começa com uma bem-aventurança (Sl 1,1: “Feliz o homem...”) e termina com um hino de louvor (Sl 150), como que retomando e confirmando a bem-aventurança inicial do Sl 1. Não pensemos, porém, que o salmo 1, por iniciar o Saltério, seja o mais antigo. Ao contrário. É possível até que seja o mais novo. Seu conteúdo, de fundo sapiencial, supõe experiências de gerações, o que não seria possível no período inicial da composição dos salmos. Sua colocação então no início do Saltério se prende mais a razão pedagógica do que cronológica ou histórica.

49 - Devemos notar também que, encerrando todo o saltério, o v. 6 do salmo 150 quer despertar em nós o desejo de sempre louvar o Senhor, como ação própria de todo ser que respira. Parece que o salmista colocou no salmo, de propósito, onze convites ao louvor, esperando que nós nos unamos a eles, formando doze, número que é simbólico na Bíblia (No AT, 12 tribos de Israel; no NT, os doze Apóstolos). Então teríamos uma completa sinfonia universal, de louvor a Deus.

50 - Finalmente, para encerrarmos o nosso estudo e para iluminar mais ainda a nossa compreensão, vejamos uma síntese: o Sl 1 começa falando de felicidade; no meio do Saltério, vamos encontrar toda uma existência de conflitos, de lutas e de vitórias; e, no fim, o Sl 150, vendo então vencidas todas as forças do mal, vai convidar-nos ao louvor eterno de Deus. Oxalá seja então a nossa vida a culminância do louvor divino, levando à plenitude a louvação cósmica e da Criação.


BIBLIOGRAFIA


- IGLH – Instrução Geral sobre a Liturgia das Horas

- IGMR – Instrução Geral sobre o Missal Romano

- Bíblia de Jerusalém

- Conhecer e Rezar os Salmos (Paulus - José Bortolini)

- CIC – Catecismo da Igreja Católica

- Dicionário de Liturgia (Paulus – Diversos autores)

- A Celebração na Igreja – Vol. I - (Loyola – Diversos autores)

João de Araújo

 

 



 

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João de Araújo - Pequeno estudo sobre os Salmos