Evangelhos e evangelistas - simples noções

OS EVANGELHOS

Segundo a tradição cristã, quatro são os evangelhos verdadeiramente inspirados e aceitos pela Igreja. Conclui-se portanto que outros evangelhos foram escritos, porém não inspirados em sentido pleno. A propósito, Lucas, em Lc 1,1, nos diz: "Visto que muitos já tentaram compor uma narração dos fatos que se cumpriram entre nós...". Aqui podemos ver que os evangelistas "não tentaram compor", mas compuseram, ou escreveram, inspirados pelo Espírito divino, na fidelidade à vontade de Deus. Somente  quatro então são os evangelhos aceitos pela Igreja,  chamados de “canônicos”, formando o cânone evangélico. São eles: de Mateus (Mt), de Marcos (Mc), de Lucas (Lc) e de João (Jo). Todos eles foram escritos após a morte e a ressurreição do Senhor. O de Marcos é considerado o mais antigo, escrito certamente no início da década de 60 d.C.. Depois vêm Mateus e Lucas, sendo que o de João foi o mais tardio, escrito mais no fim do primeiro século. Dos quatro evangelistas, apenas Mateus e João foram Apóstolos e discípulos do Senhor, já Marcos e Lucas não o conheceram, sendo Marcos discípulo de Pedro, e Lucas discípulo de Paulo.

São chamados de “sinóticos” os três primeiros evangelhos, porque são muito semelhantes na descrição dos fatos históricos e passos do Senhor, usando os evangelistas então quase os mesmos termos e sentimentos pessoais. Já o evangelho de João é diferente dos demais, não só no conteúdo e na descrição das mensagens evangélicas, muitas ausentes nos sinóticos, como também é mais voltado para o sentido teológico e simbólico.

OS EVANGELISTAS

MATEUS

Conforme escreve John Konning, grande biblista e liturgista, “Mateus é o mais didático dos evangelistas, como mostra sua organização dos dizeres de Jesus em cinco grandes discursos”. O evangelho de Mateus é então dividido em cinco discursos ou livrinhos, assim compilados: o Sermão da Montanha (Mt 5-7), o sermão missionário (Mt 10), o sermão das parábolas (Mt 13), o sermão da comunidade (Mt 18), e o sermão escatológico (Mt 24-25).

Na catequese de Mateus, predomina o sentido de gratuidade e de simplicidade. É um evangelho escrito para judeus-cristãos, isto é, para cristãos vindos do judaísmo, os quais aderiram ao ensinamento de Jesus. Por isso, o evangelho cita muito o Antigo Testamento, como também Moisés, o grande líder do povo judaico. A palavra “montanha” aí aparece como símbolo religioso. Nesse sentido simbólico, Mateus fala de “Sermão da Montanha”, enquanto Lucas, narrando o mesmo sermão, vai falar de “Sermão da Planície”.

Ainda Mateus mostra que os verdadeiros seguidores de Cristo devem ser “pequenos” neste mundo, os pobres de espirito. Assim serão eles “os benditos de Deus”, como descreve o fim do sermão escatológico, em Mt 25,31-46. Em síntese, o evangelho de Mateus apresenta Jesus como o Emanuel (Deus-Conosco e entre nós), cujo Reino é de pura justiça, destinada às vidas de bem-aventuranças. Seus discursos mostram a preocupação de Mateus com o povo de Deus, daí sua caracterização como evangelho eclesiológico.

MARCOS

É próprio de Marcos (Mc) descrever o seu Evangelho (Ev) como uma grande caminhada, de Cristo e dos discípulos, rumo a Jerusalém, partindo da Galileia. Nesta caminhada, é sua intenção que também nós nos coloquemos, a fim de nos situarmos no "hoje" da história da salvação.

Marcos era um discípulo de Jerusalém, cujo nome completo era João Marcos (At 12,12). Foi companheiro de Paulo e de Barnabé, em viagens apostólicas (At 12,25; 13,5.13; Fm 24; 2Tm 4,11; At 15,37.39). Era também primo de Barnabé (Cl 4,10). Seguiu depois Pedro para Roma, de quem se tornou discípulo e intérprete (1Pd 5,13).

Marcos escreveu o seu Evangelho em Roma, possivelmente em 64, ou, no mais tardar, antes de 70, tendo como fonte as pregações de Pedro. As comunidades de Marcos eram, pois, oriundas do paganismo, daí sua ênfase aos milagres. O Evangelho de Marcos é o menos sistemático de todos. Nele não aparece tanto a “logia", isto é, os grandes sermões e discursos, como em Mt, Lc e Jo, exceto a instrução de 13,1-37. Seu tema essencial é o "Messias oculto", ou "Filho do Homem", único título que, em Marcos, Jesus atribui a si mesmo (8,31; 9,9. 12.31; 10,33; 14,21.41). Três vezes esse título é usado para indicar a glória que vai ter como Messias junto de Deus (14,62; 8,31; 13,26); duas vezes vai indicar poder (2,10.28), e em 10,45 indica Jesus como Salvador. Ao nome "Filho do Homem" estão ligados três elementos essenciais: sofrimento, glória e poder. Remete diretamente para as profecias do Antigo Testamento (AT), a saber: Ez 3,1.4.10.17; 4,1; Dn 7,13, e liga-se também diretamente a Isaías (Cf. Is 42,1-4; 49,3; 52,13-53,12). O título de "Filho de Deus" é dado por Marcos no início de seu Evangelho (1,1.11), e por um pagão, no fim (15,39). Podemos dizer que a temática principal de Marcos se reduz em saber “quem é Jesus”, daí podermos dizer que seu evangelho é de cunho mais cristológico.

LUCAS

Lucas é o evangelista dos pobres, dos pecadores, dos pagãos, da misericórdia, da compaixão, da oração, da conversão, do perdão etc.. É o evangelho que mais fala do Espírito Santo e da bondade de Deus. Em Lucas, Jesus é o Fiel servidor de Deus, como também o profeta por excelência, o porta-voz credenciado do Altíssimo. Se o evangelho de Mateus é de cunho eclesiológico, isto é, voltado para a comunidade, para o Povo de Deus, e o de Marcos enfatiza o aspecto cristológico, isto é, procura mostrar “quem é Jesus”, podemos dizer o que o evangelho de Lucas mostra mais a práxis cristã segundo o ensinamento de Jesus, o que se pode ver também em seu segundo livro, “Os Atos dos Apóstolos”. Então em Lucas aparecem as parábolas da conversão e da misericórdia (Filho pródigo [15,11-32], Zaqueu [19-1,10], o samaritano [10,25-37], na cruz, pedindo perdão para os culpados [23,34] etc.). Lucas é o evangelho que mais mostra Jesus em oração, e a recomenda, como em Lc 18,1.

Lucas nos convida a acompanhar Jesus, a partir de seu início na Galiléia, rumo a Jerusalém. Para Lucas, é em Jerusalém que se manifestará a salvação. Em síntese, para Lucas, a missão de Jesus é simbolizada numa caminhada para Jerusalém, embora essa caminhada vai ser descrita de modo prático a partir de 9,51 até 19,27. Para Lucas, o nosso seguimento de Jesus deve ser radical, carregando, por exemplo, a nossa cruz de cada dia, e não simplesmente a cruz eventual, isto é, aquela cruz que nos vem em determinados momentos de nossa vida, como desemprego, doença, privações etc..

Lucas escreve para cristãos de cultura grega. Por isso, ele fala em 6,17 de “Sermão da planície”, diferente de Mateus, que fala de “Sermão da montanha”, como geralmente é conhecido. Lucas continua o sermão nos vv. 20-26. Saibamos que para a cultura grega “montanha” não tinha nenhum valor simbólico. Digamos ainda que o sermão de Lucas traz quatro bem-aventuranças e quatro maldições (quatro “ai de vós...”), no que se distancia fortemente de Mateus, este com oito bem-aventuranças. Como se nota, este sermão está ausente em Marcos e em João.

JOÃO

Diferente dos sinóticos (Mt, Mc e Lc), os quais têm uma visão mais ou menos semelhante, por isso são evangelhos parecidos, João tem outro objetivo ao escrever o seu evangelho. É o evangelho mais tardio, escrito provavelmente no fim do primeiro século. Não narra praticamente nada dos outros evangelhos. Nele, por exemplo, não temos a narração da instituição da Eucaristia, como nos sinóticos e em Paulo. Temos, porém, no capítulo treze do Evangelho joanino o rito do “Lava-pés”, este considerado como o ícone principal da Eucaristia. Além disso, o capítulo seis, geralmente chamado de “Discurso do Pão da Vida”, nos dá uma noção clara da celebração eucarística, em suas duas partes, tendo como Liturgia da Palavra os versículos 1-47 (aqui Cristo aparece como o Pão da Palavra e Verbo de Deus), e como Liturgia Eucarística os versículos 48-58, onde o Senhor afirma ser o seu Corpo o verdadeiro Pão da Vida. Na Liturgia do ano B, o capítulo seis de João é usado nos domingos 17 a 21 do Tempo Comum. Note-se que os milagres, em João, são chamados de “sinais”, como em 2,11, ao falar do milagre das “Bodas de Cana”, e em 4,54, ao falar da cura do filho do funcionário real, por exemplo.

João não segue um esquema geográfico (ligado a lugares) e cronológico (ligado ao tempo), diferente, pois, dos sinóticos. Assim, ele narra três viagens de Jesus a Jerusalém, enquanto os sinóticos só narram uma. Por ser “sete” um número simbólico no judaísmo daquele tempo, João só narra sete milagres, estes, porém, de grande valor profético, colocando os que os veem na decisão de aceitar ou não o evangelho. Então podemos dizer, com os grandes biblistas, que o evangelho de João é muito mais teológico que histórico, como também muito mais simbólico que cronológico.

A ARTE CRISTÃ DOS EVANGELHOS

A arte cristã sempre representou cada evangelista por um ser vivente: São Mateus é simbolizado por um homem; São Marcos, por um leão; São Lucas, por um bezerro ou touro; e São João, por uma águia.

O fundamento desses ícones é bíblico. O livro do Apocalipse de São João, por exemplo, traz a visão de quatro seres viventes que rendiam glória a Deus. Diz o texto: “O primeiro animal vivo assemelhava-se a um leão; o segundo, a um touro; o terceiro tinha um rosto como o de um homem; e o quarto era semelhante a uma águia em pleno vôo”. (Cf. Ap 4,7). Os mesmos quatro animais estão também na visão do profeta Ezequiel (cf. Ez 1,5.10). Tanto em Ezequiel como no Apocalipse são animais alados.

Segundo dados históricos, o primeiro autor cristão a utilizar essa analogia dos animais foi Santo Irineu de Lião, seguido por Santo Agostinho. Os dois, no entanto, associaram os animais aos evangelistas de forma diferente da que se usa hoje, porque a ordem dos evangelhos, no começo da Igreja, ainda não estava bem definida.

Sabe-se que foi São Jerônimo quem começou a tratar os evangelistas da forma como são tratados hoje, mas na realidade São Gregório Magno explica com mais clareza a arte cristã. Vejamos o que ele diz:

“... na verdade estes quatro animais alados simbolizam os quatro santos evangelistas, é o que demonstra o próprio início de cada um destes livros dos evangelhos. Mateus é corretamente simbolizado pelo homem porque ele inicia com a geração humana; Marcos é corretamente simbolizado pelo leão, porque inicia com o clamor no deserto; Lucas é bem simbolizado pelo bezerro, porque começa com o sacrifício no Templo; João é simbolizado adequadamente pela águia, porque começa com a divindade do Verbo, dizendo: 'No princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus, e o Verbo era Deus' (Jo 1,1), e assim tem em vista a substância divina, fixando o olhar no sol à maneira de uma águia."

Ainda em sua Homilia sobre Ezequiel, São Gregório Magno mostra como em Jesus as quatro figuras estavam claras: de fato, o Senhor veio a nós como homem (Genealogia de Mt); no deserto, como leão (Mc), levado pelo Espírito Santo (Cf. Lc 4,1), não teme as tentações e as vence, na realização plena de Gn 49,9 e Ap 5,5. Na identificação ainda do sacrifício em Lc (Bezerro ou touro), como cordeiro sem manchas foi oferecido na Cruz, e como águia (Jo) subiu às alturas celestes.

Ainda na homilia do grande Padre da Igreja, ele deixa transparecer que qualquer justo é também verdadeiramente constituído: homem, pela razão e vocação eterna; leão, o mais valente dos animais, pela sua segurança e fortaleza, dadas por Deus na caminhada humana; bezerro (ou touro), pelo sacrifício de toda uma vida consumida a serviço do Reino; e águia, pelo olhar e voo sereno em busca do sol, como ainda na contemplação das coisas celestes.

João de Araújo

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