A luz que brilha nas trevas

                                                  Eu sou a luz do mundo (Cf. Jo 8,12)

 

luz-que-brilha-trevas.JPG1 - João começa o seu evangelho com o enfoque da luz (cf. Jo 1,4-5), a luz que brilha nas trevas, mas que as trevas não reconhecem e não aceitam. Como o sol brilha e jorra sua luz sobre toda a Terra, assim o Cristo, Sol irradiador que vem do alto (cf. Lc 1,78-79), ilumina todas as nações, trazendo-lhes a salvação, em dimensão, pois, universal, como por Ele mesmo enfatizada no evangelho (cf. Mt 28,19; Mc 16,15; Lc 24,47), tornando realidade as profecias do Antigo Testamento, nos desígnios eternos de Deus (cf. Mq 4,1-2; Sl 67(66)4; Zc 2,15, etc.).

2 - O tema da universalidade da salvação, na luz de Deus, de um modo especial é caro a Lucas e a Paulo (cf. At 1,8; 9,15; 13,46-47; 26,17; Cl 1,27; Ef 3,5.8 etc.). Lucas, por exemplo, na genealogia de Jesus (Lc 3,23-38), difere de Mateus. Enquanto Mt narra a genealogia partindo de Abraão, dado o fato histórico de Gn 12 e a preocupação com os ouvintes judeus, Lc, em ordem inversa de Mt, mas cronológica, não pára, porém, em Abraão, remontando então a Adão, como que mostrando que a salvação atinge também o primeiro dos homens, em dimensão, pois, universal. É a pedagogia lucana, tão útil e essencial à compreensão do mistério divino.

3 - Ignorado pelas gerações passadas (cf. Ef 3,5), e até pelos anjos (cf. Ef 3,8-10), o mistério sublime de Cristo e da salvação universal, foi, na plenitude dos tempos (Gl 4, 4-5), totalmente revelado em sua luz, mostrando que o Deus criador não faz acepção de pessoas, de raças ou nações, embora tenha liberdade de escolher e privilegiar um povo, para ser, inicialmente, o seu povo, a sua luz existencial - no tempo, no espaço e na história.

4 - O povo de Israel foi, assim, no Antigo Testamento, o povo que Deus escolheu, para, nele, preparar o reino definitivo que seu Filho iria inaugurar... Um povo pobre, continuamente escravizado, de pobreza também intelectual, mas um povo profundamente religioso. Paradoxalmente, esse povo privilegiado não teve, porém, a capacidade de ver, em Cristo, o seu verdadeiro Messias, e vive ainda hoje, historicamente, o advento de seu redentor.

5 - Rude, para compreender a dimensão do Reino de Deus e sua universalidade, o povo de Deus sonhava com um Messias simplesmente patriota e nacionalista, politicamente comprometido com a sua sorte, avesso aos interesses de seus dominadores, e revolucionário, como os demais reis do passado. Por isso, é claro, não podia aceitar o Messias da Cruz, o pregador das bem-aventuranças, pois estas - no entender sobretudo de seus dirigentes, os sábios de Israel (sacerdotes, fariseus, escribas e doutores da lei) - além de não realizarem os sonhos do povo (!) e não alimentarem uma dinâmica (revolucionária) do presente, ainda alimentavam uma passividade maior, frente aos desafios históricos.

06 - Como se vê, não possuiam os dirigentes do povo de Israel uma sabedoria prática, não tinham ainda uma percepção verdadeira do ensinamento profético, como não assimilavam, de maneira honesta, a doutrina do Antigo Testamento sobre o verdadeiro Messias, na pedagogia admirável de Deus. Justamente nas bem-aventuranças, como síntese de toda a pregação evangélica, podiam os mestres de Israel perceber a dinâmica do Reino, dinâmica que exige, por si mesma, profunda transformação histórica e existencial de cada pessoa.

7 - Na verdade, porém, não estavam eles preocupados com a sorte de seu povo, como mostra a Escritura. Podemos dizer até que eram aliados dos poderosos, servindo-se do exercício das funções próprias, com interpretações subjetivas das leis, para oprimir também duramente o povo, impondo-lhe pesados fardos, que eles próprios não carregavam, como foi observado e duramente condenado por Cristo (cf. Mt 23,4).

8 - Como a luz de Deus é de brilho universal e não se deixa ofuscar pelas nuvens do mundo limitado e de trevas, fora de Israel magos são chamados e conduzidos pela estrela a adorar o Menino-Deus, recém-nascido em Belém. Por isso, a Igreja vai celebrar, no ciclo do Natal, a manifestação do Senhor a todos os povos, na chamada festa da Epifania, popularmente conhecida como "festa dos santos reis", que a simplicidade popular transforma, principalmente em zonas rurais, num misto de religiosidade e de folclore, sem, pois, aquela significação profunda da liturgia, muito mais talvez pela carência de uma catequese mais prática e objetiva. Na celebração da Epifania, a liturgia dá sim importância ao episódio dos magos, mas enfatiza, com mais objetividade, o caráter de catolicidade, isto é, da universalidade redentora do Reino de Deus, inaugurado na Terra pelo Verbo de Deus encarnado.

9 - Como luz do mundo (cf. Jo 8,12), e brilhando também na face da Igreja, a luz do Cristo Ressuscitado chama agora todos os homens e todos os povos à salvação, pela eficácia do anúncio profético, dos sacramentos e da liturgia, congregando toda a humanidade num único povo, cuja diversidade resplandece na unidade, por ação do Espírito Santo, tornando-se então, definitivamente, o novo Povo de Deus.

10 - Assim, o povo de Israel, contemplado na antiga aliança, até então minúsculo e por vezes insignificante, não fica destronado, mas agregado a um povo universal, o Novo Israel de Deus (cf. Gl 6,16), numa dimensão espiritual totalmente nova, profundamente sacramental, verdadeiramente Igreja, povo santo e mediador, (cf. 1Pd 2,9), luz que deverá brilhar para sempre, dissipando, na própria luz do Verbo de Deus, todas as trevas das regiões da morte e do pecado (cf. Is 8,23; 9,1; Mt 4,13-16).

11 - Iluminados pelos raios da luz verdadeira, vemos então que, se a visita dos magos (a Bíblia não fala de reis) e o anúncio aos pastores, revelam-nos a liberdade de Deus quanto à escolha dos convidados a visitar o presépio, por outro lado Deus não dispensa ninguém de ser construtor, aqui, de seu reino.

12 - Nosso Deus é, pois, um Deus inteiramente livre. De fato, Herodes, ou mesmo César Augusto, os poderosos da época, politicamente falando, ou então os sacerdotes e escribas, também importantes no cenário religioso, não foram movidos pelo Espírito de Deus para uma visita ao Menino-Deus. Por causa de sua surdez espiritual, não ouviram eles o cântico dos anjos, cântico de paz, como ouviram os pastores; não viram eles a luz da estrela, como viram os magos, porque também não a tinham no coração.

13 - Como se vê, a estrela de Deus é enviada a quem Deus livremente quer. Não é condicionada pelas convenções humanas ou pelos determinismos sociais, tão em voga no nosso mundo. Deus quis despertar os magos do Oriente, e estes, sensíveis ao sinal da estrela, foram ao encontro do Redentor, como os pastores, antes, na simplicidade, deram crédito às palavras do anjo, pois o Salvador, "envolto em panos" (cf. Lc 2,10-12), se identificava com eles.

14 - Até os presentes dos magos revelam o seu estado de espírito, pois eram uma profissão de fé no Menino-Deus, reconhecendo-o como rei, como Deus e como homem. Enquanto Herodes, depois, procurava o menino, para o matar, os magos, antes, foram ao seu encontro, em caminhada de peregrinação, para o adorar.

15 - Mas também - diga-se - a verdadeira Estrela do Reino de Deus não é um simples fenômeno de astronomia, nem mesmo um grande luzeiro a piscar no horizonte infinito. Não se identifica simplesmente pela sua claridade, nem se mede por milhões de anos-luz. A verdadeira luz do reino é o próprio Deus, cuja face o mundo viu brilhar na face redentora de Cristo, e cujos raios, de luminosidade, resplandecem sempre e sempre na face da Igreja, sacramento que é de unidade de todos os povos.

16 - Esse luzeiro espiritual é que dissipa todas as sombras ilusórias do "príncipe das trevas", convidando o mundo, todos os homens, todas as nações, para a vida de luz, no viver consciente da própria vida de Deus. Esse luzeiro salvífico, verdadeiro Círio Pascal de toda a nossa vida, é que dá sustentação a toda mecha que ainda fumega (cf. Is 42,3) e faz de nosso ser, corruptível, força viva e gloriosa; de nossas limitações e fraquezas, poder eficaz e redentor; e de nosso corpo animal, transparência de pura espiritualidade (cf. 1Cor 15,42-44). A luz que brilha nas trevas é, pois, a luz da própria luz, foco fumegante e celestial, gerando, sempre mais, vidas de luz e de redenção.

João de Araújo


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