Particularidades do Ano Litúrgico

Tempo cósmico, vida humana e projeto de Deus

1 - Como sabemos, a comunidade humana vive no tempo, sempre em harmonia com o ano natural ou cósmico, com as mudanças básicas e salutares de suas quatro estações climáticas. Estas como que dinamizam a vida humana, quebrando-lhe toda possível rotina existencial. A pessoa é, pois, chamada a viver toda a riqueza natural da própria estação cósmica. Na organização da sociedade humana, o ano cósmico é chamado ano calendário ou civil. Nele, as pessoas, em consenso universal, desenvolvem as tarefas da atividade humana.

2 - Podemos dizer que, assim como a vida humana, no seu aspecto natural, se desenvolve no clima salutar do ano cósmico, também a vida cristã, na plena comunhão com Deus, vai viver o projeto do Senhor numa dinâmica litúrgica própria de um ano específico, chamado, como vimos, Ano Litúrgico. Mas este não deve, porém, ser visto como um concorrente do ano civil, porque também o ano cósmico e civil é um dom do Criador. Deus, inserindo-se no tempo, através de seu Filho, pela Encarnação, santificou ainda mais o tempo. Por isso, como já se expôs, todo o tempo se torna também tempo de salvação.

Ritmo cósmico do Ano Litúrgico

3 - Como se sabe, o ano civil está inteiramente identificado com o ciclo solar, regendo-se pelos ditames das quatro estações, mas marcado também pelo movimento lunar, onde se contam as semanas. Ano, mês  dia e hora, como frações do tempo, aqui se harmonizam, no desenvolvimento da vida humana, tendo também ressonâncias salvíficas na Liturgia e na vida da Igreja.

4 - Seguindo a tradição judaica, os cristãos do Hemisfério Norte têm a datação anual da Páscoa no equinócio da primavera, por este ser ponto de equilíbrio, de harmonia, de duração igual da noite e do dia, de equiparação, pois, entre horas de luz e horas de escuridão, momento de surgimento de vida nova na natureza e de renascimento da vida. Na mesma datação da Páscoa, isto é, no equinócio da primavera boreal, vai também a Liturgia celebrar a concepção de Cristo (25 de março – Solenidade da Anunciação), motivando então o seu nascimento em 25 de dezembro pelo cômputo cósmico, porém não tanto, como se vê, pela festa pagã do “sol invicto”, a qual, às vezes, se sobrepõe ao entendimento geral. Com essa compreensão, situados os acontecimentos históricos no Hemisfério Norte, vemos que Jesus foi concebido, morto, sepultado e ressuscitado na primavera, ou seja, na estação da vida e das flores. Nesse sentido, é possível que João tinha em mente o jardim primordial de Gn 2,8.10.15; 3,1-3.23 ao insistir na existência de um jardim na narrativa da Paixão do Senhor (cf. Jo 18,1b; 19,41). Nesse vislumbre pascal, podemos afirmar então que o ser humano foi criado para viver no jardim de Deus, e não para ser dele expulso.

5 - Há também no Hemisfério Norte o simbolismo suplementar da lua cheia, dando a entender que, na ressurreição de Cristo, o dia tem vinte e quatro horas de luz. Já no Hemisfério Sul, austral, a datação da Páscoa se dá no outono, por causa da inversão do equinócio nos dois hemisférios. Muitos estudiosos da liturgia são favoráveis à fixação de uma data universal, fixa portanto, para a Páscoa, não levando em conta a situação lunar, que ainda prevalece na datação cristã, mas a solar, e isso por causa da realidade mundial, inclusive a econômica, que não podemos ignorar. A Igreja, de acordo com o Apêndice da SC, obedecidas certas normas, aceita a possibilidade de tal mudança, mas pouco progresso houve entre as Igrejas cristãs, é verdade, por isso vai demorar ainda um pouco, mas virá certamente no futuro.

Nota explicativa: A Igreja, hoje, celebra a Páscoa não no dia quatorze do mês de Nisã, isto é, na data da páscoa judaica, como celebravam os cristãos da Ásia Menor e da Síria, mas no domingo seguinte, acabando assim com a controvérsia pascal do século segundo, por determinação do Concílio de Niceia.

6 - Com relação ao Natal do Senhor, a sensibilidade litúrgica vai escolher outro núcleo do ano cósmico, com seu dinamismo próprio.  Este outro núcleo, ou momento, é o solstício de inverno, o "Dies Natalis Solis Invictus", ou seja, o "dia de nascimento do sol invicto". Isto também no Hemisfério Norte, pois no Hemisfério Sul a realidade temporal é de pleno verão. Neste tempo, os dias começam a crescer, e o sol, parecendo exausto e exangue, depois de uma longa marcha anual, renasce vivo e surpreendente. É neste contexto, do "Sol Invicto", solsticial, que vai aparecer na face da Terra o Filho de Deus, verdadeiro “Sol nascente” (cf. Lc 1,78), “Sol da justiça”  (cf. Ml 3,20), e ainda “Luz do mundo” (cf. Jo 8,12). No mesmo sentido, a antífona da Liturgia das Horas, do dia 24 de dezembro, inspirando-se no Sl 19[18],5-7, na sua realidade cósmico-histórico-salvífica, vai cantar belamente: "Quando o sol sair, vereis o Rei dos reis que vem do Pai, como o esposo sai da sua câmara nupcial".

7 - Vê-se por aqui que, para a fixação do Natal, o sentido bíblico parece prevalecer sobre a simples e suposta rejeição dos cristãos à festa pagã do “sol invicto”, instituída pelo imperador Aureliano no ano de 274, para todo o Império e fixada em 25 de dezembro, então solstício de inverno. Concluindo: na datação  cristã para o Natal,  rejeita-se o conteúdo pagão da festa pagã, mas é aceito o sentido cósmico, por ser este também carregado de sentido para os cristãos dos séculos III e IV.  Assim, 25 de dezembro, embora não possamos afirmar que seja a data histórica do nascimento do Salvador, também não podemos negar, com base em razões simbólicas e de outros fatos e aspectos bíblicos, que dela esteja longe.

João de Araújo

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