O Mistério Pascal de Cristo

1 – Para falarmos do Mistério Pascal de Cristo, precisamos da linguagem clara e sábia da Igreja, como mestra das coisas de Deus. Mas precisamos também da linguagem afetiva docoração. Esta nos convida ao silêncio, ao encantamento, ao regozijo, à exultação, como ainda a maravilhar-nos diante de tão profundo mistério. O Mistério Pascal de Cristo é a expressão mais viva do amor de Deus por nós. Ele pertence ao momento divino (Kairós) e se irrompe em nosso tempo (chronos), enchendo a nossa história da plenitude salvífica.

2 – Vejamos algumas noções: na Liturgia e no vocabulário teológico da Igreja, o Mistério Pascal de Cristo é sempre o núcleo central de nossa fé, ou seja, toda a obra da Redenção, da qual nasce o admirável sacramento da Eucaristia. Revela-nos ele o desígnio amoroso de Deus a nosso respeito, mistério  eternamente em Deus escondido e revelado no tempo, por meio dos profetas. Chegada a plenitude do tempo, Deus envia o seu Filho (cf. Gl 4,4), e tal mistério então se concretiza em Jesus Cristo, desde a Encarnação, mas principalmente na sua morte, paixão e ressurreição, culminando ainda na sua ascensão e glorificação eterna (cf. SC n. 5). Assim, o Mistério Pascal é a chave teológica para a compreensão de Cristo, da Igreja e da Liturgia, e à sua luz toda a nossa vida já brilha no fulgor da ressurreição.

3 - Toda vez, pois, que celebramos a Eucaristia celebramos o Mistério Pascal do Senhor, como memorial, atendendo o que ele ordenou: “Fazei isto em memória de mim”. Assim a Igreja, pela sacramentalidade da Liturgia, não só perpetua no tempo o sacrifício da Cruz (cf. SC n. 47), como também se une a Cristo, na sua auto-oferenda ao Pai, como rezamos nas Orações Eucarísticas.  

4 – Memorial, na compreensão judaica e cristã, não é simples memória,  lembrança ou  recordação psicológica e subjetiva de pessoas ou de fatos acontecidos. O memorial é de valor sacramental, que torna presente, no caso da Eucaristia, não só a pessoa de Jesus Cristo no ato celebrativo, mas também, com ele e nele, todos os seus atos salvadores. Isto se dá, teologicamente, porque a Páscoa de Cristo não se separa dele. Ele é então o Cristo Pascal, e sua Páscoa se torna também nossa, como ensina São Paulo, convidando-nos a celebrar e viver então na pureza e na verdade, “Pois Cristo, nossa Páscoa, foi imolado” (cf. 1Cor 5,7). Essa verdade fundamental de Cristo como "nossa Páscoa" é  também proclamada pela Igreja nos prefácios pascais, aí dando graças ao Pai não só na solene celebração, mas também, como consequência, "sempre e em todo lugar".
    

5 – Mas, entendamos: ao falarmos da “presença” dos atos salvadores de Deus na Liturgia, especialmente na Eucaristia, não estamos falando de renovação ou de repetição dos fatos históricos, o que seria impossível, pois o evento do Calvário foi único e irrepetível (cf. Hb 9,28), como também a ceia do Cenáculo. É presença sacramental, em mistério, a qual não está mais sujeita aos limites do tempo e do espaço, por isso mesmo é mais “real” e plena do que a simples presença histórica. Para os judeus, celebrar o memorial da páscoa significa colocar-se junto de seus antecipados e viver a libertação do Egito, ao mesmo tempo que aguardam a sua definitiva libertação, na linha de celebração memorial, pois também para eles a saída do Egito é fato irrepetível, mas aponta para a certeza de um futuro melhor, carregado do amor de Deus.

6 – Na Eucaristia podemos dizer que existem dois centros dinâmicos, a Liturgia da Palavra (Mesa da Palavra) e a Liturgia Eucarística (Mesa do Pão), formando um só ato de culto. São dois centros dinâmicos, mas um só é o seu núcleo: o Mistério Pascal de Cristo, como acima descrito. Este é o sol irradiador, que derrama toda a vitalidade salvífica para todo o Ano Litúrgico, como “lugar” ainda mais concreto na Eucaristia.

7 – Ao falarmos de “presença real” do Senhor na Eucaristia, queremos evitar todo aspecto fisicista, compreensão estreita, que predominou em muitos séculos e que ainda existe em muitos de nós.  Trata-se de presença “real”, sim, mas em mistério, isto é, sacramental, num novo modo de ser, sem as categorias de tempo e de espaço, pois o Senhor ressuscitado e glorificado, o Kyrios,  já vive na plenitude eterna, não estando mais sujeito aos limites humanos e cósmicos. Chamamos a esta presença de dinâmica e sacramental, em oposição à simples conceituação de presença física, que seria mais estática e devocional. De fato, nas palavras do Senhor aparece primeiro a comunhão sacramental (“Tomai e comei...” e “Tomai e bebei...”), seguida da afirmação teológica segundo a qual o pão e o vinho não são mais alimento terrestre, mas celeste (“Isto é o meu Corpo, que será entregue...” e “Isto é o meu Sangue, que será derramado...”). Aqui a Eucaristia aparece como verdadeiro sacrifício, na ordem sacramental e em relação ao sacrifício único e redentor do Calvário. 

8 – Na celebração da Eucaristia, o mistério da presença do Senhor se revela em quatro dimensões ou formas de sua única e mesma presença junto de Deus. Assim, na celebração, o Senhor se faz presente: 

 

a) – Primeiramente, e antes de tudo, na assembleia celebrante, pois ele disse: “...onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, ali estou eu no meio deles” (cf. Mt 18,20). Aqui então se vê a dignidade da assembleia celebrante, que por isso mesmo deveria ser mais reverenciada e acolhida.  

 

b) - A segunda dimensão se verifica  na Liturgia da Palavra, pois, como diz o Concílio Vaticano II, “Presente está pela sua Palavra, pois é Ele mesmo que  fala quando se leem as sagradas escrituras na igreja “(cf. SC n. 7). Aqui, a importância do ministério do leitor e do diácono, que deveriam preparar-se melhor para a função, tanto nas questões práticas e técnicas como na formação bíblica, buscando mais familiaridade com a Palavra de Deus. 

 

c) - Já a terceira dimensão é revelada na pessoa do presidente (bispo ou sacerdote), como ícone de Cristo, agindo o sacerdote “in persona Christi”, ou seja, na pessoa de Cristo.

 

d) - Finalmente, a presença mais substancial,  no pão e no vinho, em culminância do mistério, mas não em detrimento das outras “presenças”, como se elas não  fossem “reais”, como ensinou Paulo VI. A importância também da chamada “presença real” é que ela permanece após a celebração, favorecendo até mesmo o culto eucarístico fora da missa. Seria desejável que, dadas essas dimensões, toda a assembleia celebrante pudesse delas ter consciência, sentindo-as, contemplando-as e vivendo-as em clima de profunda exultação cristã. 

9 – Saibamos que a finalidade principal da Eucaristia é formar o corpo eclesial de Cristo, a Igreja, como Corpo Místico do Senhor. Assim, tanto a Liturgia pede a transformação do pão e do vinho no Corpo do Senhor, como igualmente pede que, comungando sacramentalmente o corpo do Senhor, sob os sinais eucarísticos, sejamos também nós transformados no seu corpo místico e eclesial. Infelizmente, na prática, só se dá atenção à primeira invocação (em grego=epiclese), até mesmo com gestos de adoração, mas a segunda invocação passa como que ignorada ou despercebida.

10 – Na celebração da Eucaristia fazem-se presentes os quatro gestos de Jesus na ceia do Cenáculo. De fato, ele tomou o pão, tomou o cálice (1° gesto=preparação dos dons); elevou os olhos ao céu, deu graças (2° gesto=Oração Eucarística ou anáfora); partiu o pão (3° gesto=fração do pão); e o deu a seus discípulos (4° gesto=Comunhão). Na configuração litúrgica desses quatro gestos, a Igreja estruturou então os ritos da Liturgia Eucarística (cf. IGMR n. 72 e DPLS n. 171).

11 - Por inspiração bíblica, baseando-se sobretudo no diálogo de Jesus com os Apóstolos, na noite da ceia pascal, como ainda no episódio de Emaús (cf. Lc 24,13-35), e em Trôade (cf. At 20,7-12), a Igreja inseriu na celebração eucarística também a Liturgia da Palavra e, mais tarde, os ritos iniciais e finais da Eucaristia. Fiel então à ordem do Senhor, a Igreja jamais deixou de celebrar a Eucaristia, que, como vimos, é sempre celebração do Mistério Pascal de Cristo. Saibamos finalmente que o Mistério Pascal também é celebrado em toda a Liturgia (na Liturgia das Horas, nos demais sacramentos), mas numa densidade menor com relação à Eucaristia, uma vez que a Eucaristia é como que a fonte primária da graça da Redenção (cf. SC n. 10).

João de Araújo

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