Caráter sacramental da Palavra de Deus

1 - Estamos acostumados a entender a sacramentalidade apenas no chamado septenário sacramental, isto é, nos sete sacramentos que a Igreja sempre celebra. Também entendemos “sacramento” como sinal sensível e eficaz da graça, o que continua sendo verdade, mas sua realidade teológica não termina aí. São Leão Magno ensina que o que era “visível” em Cristo, depois de sua ascensão passou para os ritos sacramentais da Igreja. Imagem do Deus invisível e Primogênito de toda criatura (cf. Cl 1,15), Verbo eterno de Deus (cf. Jo 1,1.14), Cristo é, pois, o sacramento original, sacramento do Pai, e nele está a origem de toda sacramentalidade, que se derrama não só para os sete sacramentos, mas para a Igreja, para os fiéis etc., na eficácia de seu Mistério Pascal.


2 - “A realidade sacramental não é suficientemente expressa se reduzida ao septenário sacramental”, conclui Dionísio Borobio, como acima já intuímos. De fato, no passado a palavra sacramento designava também realidades distintas, como Igreja, Cristo, Escritura, Páscoa etc., como se vê principalmente nos Santos Padres, e como ensina a Igreja também hoje, se estudarmos atentamente os seus documentos (cf. CIC n. 2305; LG 1; SC 5, p. ex.), onde principalmente a Igreja aparece como “sacramento de salvação”. O que aconteceu antes foi um “descuido” na catequese, influenciada pela designação numérica e canônica dos sete sacramentos. No contexto da Liturgia, podemos dizer que todo sacramento é litúrgico, como também podemos afirmar que toda a Liturgia é sacramental, pois ela, como expressão simbólica, nos remete sempre ao Mistério Pascal de Cristo, tendo a própria palavra divina como fundamento.


3 - Com relação à Palavra de Deus na missa pré-conciliar, curioso é que o Movimento Litúrgico, mesmo na sua objetividade, não teve, porém, sensibilidade bíblica para detectar sua pobreza. No missal antigo, a Liturgia da Palavra era denominada Ante-Missa, como se ela fosse um simples preâmbulo, podendo então até ser dispensada, dando a entender que a celebração do memorial eucarístico de fato só começava com a procissão das oferendas. Fortalecendo essa compreensão imprópria e equivocada, até teólogos e canonistas afirmavam que os fiéis cumpriam o preceito chegando no momento das oferendas, que, naquele contexto, era chamado de Ofertório. Mas o que se diz do Movimento Litúrgico, quanto à não percepção da pobreza ministerial da Palavra de Deus na liturgia pré-conciliar, diga-se também do Movimento Bíblico quanto à Liturgia: este não percebeu também a necessária celebração para a plena eficácia sacramental da Palavra, fixando-se então numa abertura maior, mas para estudos ou para leitura simplesmente.

 

4 - No âmbito, pois, da universalidade sacramental, podemos então ver Cristo como o sacramento original, sacramento do Pai, que o “visibiliza” e o torna mais ainda presente em nossa vida. Nessa mesma compreensão sacramental, vemos também a Igreja como o sacramento de Cristo, seu corpo místico e visível, atuante no mundo, sobretudo voltada para os pobres, excluídos e marginalizados. Ainda na mesma linha de entendimento, o cristão pode ser visto como sacramento da Igreja, tornando-a também “visível” em sua pessoa, por uma vida cristã comprometida com a justiça e na fé batismal. Digamos ainda que, por extensão, toda a criação pode ser vista como sacramental, uma vez que ela revela o seu criador e manifesta a sua bondade.

 

Exemplos simples de eficácia sacramental da Palavra de Deus

 

5 – Para compreendermos, em sentido simples, a sacramentalidade da Palavra de Deus, a título de exemplos citamos aqui duas passagens bíblicas em que aparece claramente a sua eficácia sacramental. Em Gn 1,3, o autor bíblico, em narrativa, diz: “Deus disse”: (E aí vem a ordem divina): “Haja luz”, e, em seguida, a constatação do autor: “e houve luz”. Outro exemplo podemos tirar de Jo 11,43. Narra o evangelista: “Jesus gritou em alta voz:” (E vem a ordem de Jesus): “Lázaro, vem para fora!”, seguindo a constatação também do evangelista, no v. 44: “E o morto saiu”. As constatações “e houve luz” e “o morto saiu”, das citações bíblicas, devem ser compreendidas como “eficácia sacramental”. A mesma sacramentalidade da Palavra de Deus, isto é, a mesma eficácia salvífica, pode ser apontada para as palavras da Consagração ou relato institucional na celebração da Eucaristia (Pão que se torna o Corpo sacramental de Cristo, vinho que se torna o seu Sangue redentor, conforme a fé da Igreja). Várias outras citações bíblicas poderiam ser aqui elencadas, como Jo 5,8-9; Lc 7,14-15; Mc 10,52-53; Mt 12,13 etc..

 

6 - Diz a Constituição dogmática “Dei Verbum” (n. 21): “A Igreja sempre venerou as divinas Escrituras, da mesma forma como o próprio Corpo do Senhor, já que, principalmente na Sagrada Liturgia, sem cessar toma da mesa da palavra de Deus quanto do Corpo do Cristo o pão da vida, e o distribui aos fiéis”. Portanto o “pão da vida” identifica-se plenamente com o “pão da Palavra” e com o “Pão eucarístico”. E o Decreto “Presbyterorum Ordinis” (sobre o ministério dos presbíteros) no n. 4, fazendo eco à Sagrada Escritura (cf. 1Pd 1,23 e At 6,7), vai dizer: “O povo de Deus congrega-se antes de mais nada pela palavra do Deus vivo”, o que acontece na sua proclamação em assembléia litúrgica. Em chave catequética, podemos dizer que o discurso do Pão da vida, de Jo 6, pode identificar as duas mesas, inseparáveis, de DV 21: como mesa da Palavra, os vv. 1-50; e como mesa da Eucaristia, os vv. 51-58.

 

7 - Devemos saber que a sacramentalidade da Palavra de Deus produz em nós dois efeitos, que são simultâneos: o de nos congregar, tornando-nos assembleia cristã, e o de nos fortalecer, como pão da vida, sustentando-nos na fidelidade ao projeto de Deus. É oportuno ainda dizer que a sacramentalidade da Palavra supõe a sua proclamação e celebração, e isso no âmbito da assembleia litúrgica, como acima já se expôs. Tal afirmação funda-se no fato de que os livros bíblicos foram escritos antes de tudo para o culto: o Antigo Testamento, no contexto de culto sinagogal; e o Novo Testamento, no contexto das celebrações das comunidades cristãs primitivas. Portanto a simples materialidade da Palavra não é suficiente para o valor sacramental. Isso explica porque, na procissão de entrada da missa, por exemplo, a bíblia, que muitos valorizam, nada acrescenta de riqueza litúrgica ao rito. A riqueza não está, pois, no livro, na palavra em si, estática e material, mas na sua proclamação litúrgica e celebrativa.

 

8 - Se o documento conciliar sobre a revelação divina (DV) favoreceu a feliz volta da Igreja à riqueza da Palavra de Deus, o documento sobre a sagrada liturgia “Sacrosanctum Concilium” (SC), embora anterior cronologicamente à DV, soube colocar em prática, na reforma litúrgica, como se vê nos Lecionários da Missa, como também na Liturgia das Horas, o mesmo valor inestimável da Palavra de Deus, que a DV aprofundou. Assim, por exemplo, SC 56, aplicando o princípio fundamental de DV 21, vai afirmar: “As duas partes, de que consta de certa forma a missa, a liturgia da palavra e a liturgia eucarística, estão tão estreitamente unidas, que formam um único ato de culto”. E, felizmente, a IGMR no n. 28, aplica para a reforma litúrgica a afirmação conciliar, com as mesmas palavras, incluindo ainda: “De fato, na missa se prepara tanto a mesa da Palavra de Deus como a do corpo de Cristo, para ensinar e alimentar os fiéis”.

 

9 - Na prática litúrgica, resta saber se os princípios acima expostos estão sendo seguidos, por exemplo: o zelo e o cuidado tanto para o ambão como para o altar. Em certas igrejas notamos que o ambão é uma simples estante, quase sem valor simbólico, enquanto o altar aparece às vezes exageradamente revestido de toalhas e adornos, ou então carregado de elementos não necessários à sua função simbólica e litúrgica. Na Liturgia - saibamos - ambão e altar são os dois focos centrais, para os quais, nos dois momentos da celebração, voltamos o nosso olhar e nosso ouvido, em viva participação. Quanto ao ambão, nosso ouvido, em escuta receptiva, deve lembrar Dt 6,4 (“Ouve, ó Israel...”), sabendo que hoje somos o novo “Israel de Deus” (cf, Gl 6,16); e quanto ao altar, cabe a nós ouvir em escuta ativa (cf. IGMR n. 78), pois o que lá se diz são “palavras nossas”, pela voz comum do sacerdote. Portanto, ambão e altar devem ajudar-nos a mergulhar no mistério que celebramos. Acrescente-se ainda a tudo o que se disse, também o zelo e o bom gosto para com os livros litúrgicos (Lecionário, Evangeliário e Missal), além da boa preparação dos ministros, ordenados e leigos.

João de Araújo

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